A MINHA RUA
Passei ontem pela “minha rua”! Tão diferente de minha rua de outrora, a de minha infância, onde corria solta, onde sorria feliz nas brincadeiras de menina pobre de um bairro operário, rua que viu surgir meus primeiros sonhos de adolescente, que acolheu minhas primeiras lágrimas de desencanto, rua que viu chegar meu primeiro namoradinho, que me viu desabrochar para o amor do homem que seria o pai de meus filhos, o companheiro de uma jornada de tantas décadas, enfim, a minha rua... A minha querida Rua Campos Salles!
Começa na Rua Caetano Pinto mas só a considerávamos nossa até a Rua Piratininga. Aquele cruzamento era como que um divisor de águas. Para além da esquina, nem lhe notávamos a existência. A vida acontecia naquele pedacinho, pelo menos para nós. Fecho meus olhos e ainda vejo o armazém do Zé Lora, na esquina da Rua Flora, a quitanda do Sr. Brás, do outro lado da rua, quase em frente à minha casa, a venda do Bastião (imaginem um japonês com esse nome!), essa sim bem em frente, na esquina da Rua Prof. Batista de Andrade que era uma ruazinha linda, com sobradinhos ajardinados, a leiteria da Dona Mariucha – onde comprávamos, além do leite e do pão nosso de cada dia, doces que nos deliciavam e um sorvete maravilhoso. Aliás, picolés feitos com capricho, sorvetes de massa que eram servidos em copinhos brancos, feitos de uma massa semelhante à das hóstias, ou entre quadrados de Waffers, que chamávamos sanduíche, e um fantástico “esquimo” – sorvete de nata envolvido em uma casca de chocolate, especialidades da casa que refrescavam nosso verão.
Rua de tantas histórias, de tantos acontecimentos, de tantas esperanças, de tantos pregões. Sobre os que eram doces e alegravam minhas tardes, já lhes falei. Falo agora dos que traziam soluções nas mãos de hábeis “remendões” como o funileiro que passava uma vez por semana para consertar as panelas de alumínio, tampando com pedacinhos de solda os estragos que o fogo e o tempo faziam no metal, ou o amolador de facas e tesouras, que vinha soprando uma espécie de apito em escala musical, o guarda-chuveiro que com maestria trocava as varetas que o vento se encarregara de quebrar, o vidraceiro que substituía os vidros que os garotos tivessem quebrado com suas bolas ou com alguma pedra que “sem que eles soubessem porque nem como”, os tivesse partido, enfim, todo um plantel de serviços à porta de casa, sem contar com o “turco da prestação” que passava com sua malinha numa mão e uma porção de gravatas, lenços e afins pendurados na outra, subindo pelo braço e que, num português difícil de entender oferecia às donas de casa a oportunidade de comprar tecidos, toalhas, enfim, o que precisassem, mesmo porque, se não os tivesse, bastava encomendar que ele traria na semana seguinte, para pagar um pouquinho por semana, num prazo a perder de vista.
Rua que se enchia de alarido nos finais de tarde, quando a criançada, terminado o turno escolar e feita a lição de casa, juntava-se para as brincadeiras, as jovens formavam grupinhos para trocas de segredinhos e confidências, os rapazes, nas esquinas ou próximo a elas, ficavam espichando olhares numa tentativa de paquera, nem sempre frutífera, já que as meninas preferiam encontrar príncipes em outras plagas, garotos que elas considerassem mais interessantes, que trouxesse a magia do desconhecido a ser revelado. E mais para a noite, terminado o jantar, os homens colocavam cadeiras nas calçadas para um bate papo entre visinhos, juntando-se a eles, depois de arrumada a cozinha, suas esposas, numa conversa amigável que ia até lá pelas nove da noite, ou um pouco mais tarde se a noite fosse de verão, quente demais para dormir.
Rua que se cobria de respeito nos momentos difíceis, que se engalanava nos dias de festa, rua que congregava visinhos que eram mais que isso, que eram amigos com quem se poderia contar em qualquer ocasião, rua que mora nas minhas recordações, que trago no meu coração e que ao visitar me encheu de nostalgia e tristeza ao pensar que seus atuais moradores nem de longe podem imaginar as doces lembranças que pairam no ar, entre as calçadas descuidadas, em cada pedra, em cada canto da minha rua...
(Do livro "Encontro com a menina que eu fui")
Começa na Rua Caetano Pinto mas só a considerávamos nossa até a Rua Piratininga. Aquele cruzamento era como que um divisor de águas. Para além da esquina, nem lhe notávamos a existência. A vida acontecia naquele pedacinho, pelo menos para nós. Fecho meus olhos e ainda vejo o armazém do Zé Lora, na esquina da Rua Flora, a quitanda do Sr. Brás, do outro lado da rua, quase em frente à minha casa, a venda do Bastião (imaginem um japonês com esse nome!), essa sim bem em frente, na esquina da Rua Prof. Batista de Andrade que era uma ruazinha linda, com sobradinhos ajardinados, a leiteria da Dona Mariucha – onde comprávamos, além do leite e do pão nosso de cada dia, doces que nos deliciavam e um sorvete maravilhoso. Aliás, picolés feitos com capricho, sorvetes de massa que eram servidos em copinhos brancos, feitos de uma massa semelhante à das hóstias, ou entre quadrados de Waffers, que chamávamos sanduíche, e um fantástico “esquimo” – sorvete de nata envolvido em uma casca de chocolate, especialidades da casa que refrescavam nosso verão.
Rua de tantas histórias, de tantos acontecimentos, de tantas esperanças, de tantos pregões. Sobre os que eram doces e alegravam minhas tardes, já lhes falei. Falo agora dos que traziam soluções nas mãos de hábeis “remendões” como o funileiro que passava uma vez por semana para consertar as panelas de alumínio, tampando com pedacinhos de solda os estragos que o fogo e o tempo faziam no metal, ou o amolador de facas e tesouras, que vinha soprando uma espécie de apito em escala musical, o guarda-chuveiro que com maestria trocava as varetas que o vento se encarregara de quebrar, o vidraceiro que substituía os vidros que os garotos tivessem quebrado com suas bolas ou com alguma pedra que “sem que eles soubessem porque nem como”, os tivesse partido, enfim, todo um plantel de serviços à porta de casa, sem contar com o “turco da prestação” que passava com sua malinha numa mão e uma porção de gravatas, lenços e afins pendurados na outra, subindo pelo braço e que, num português difícil de entender oferecia às donas de casa a oportunidade de comprar tecidos, toalhas, enfim, o que precisassem, mesmo porque, se não os tivesse, bastava encomendar que ele traria na semana seguinte, para pagar um pouquinho por semana, num prazo a perder de vista.
Rua que se enchia de alarido nos finais de tarde, quando a criançada, terminado o turno escolar e feita a lição de casa, juntava-se para as brincadeiras, as jovens formavam grupinhos para trocas de segredinhos e confidências, os rapazes, nas esquinas ou próximo a elas, ficavam espichando olhares numa tentativa de paquera, nem sempre frutífera, já que as meninas preferiam encontrar príncipes em outras plagas, garotos que elas considerassem mais interessantes, que trouxesse a magia do desconhecido a ser revelado. E mais para a noite, terminado o jantar, os homens colocavam cadeiras nas calçadas para um bate papo entre visinhos, juntando-se a eles, depois de arrumada a cozinha, suas esposas, numa conversa amigável que ia até lá pelas nove da noite, ou um pouco mais tarde se a noite fosse de verão, quente demais para dormir.
Rua que se cobria de respeito nos momentos difíceis, que se engalanava nos dias de festa, rua que congregava visinhos que eram mais que isso, que eram amigos com quem se poderia contar em qualquer ocasião, rua que mora nas minhas recordações, que trago no meu coração e que ao visitar me encheu de nostalgia e tristeza ao pensar que seus atuais moradores nem de longe podem imaginar as doces lembranças que pairam no ar, entre as calçadas descuidadas, em cada pedra, em cada canto da minha rua...
(Do livro "Encontro com a menina que eu fui")
6 comentários:
Meus pais moraram no Brás, no Ipiranga, meu irmão mais velho é paulistano, e eles contavam muitas histórias do bairro. As histórias antigas de São Paulo sempre passam pelo Brás. Eu também morei em São Paulo 5 anos, e conheci bem o Brás. Num dos endereços da internet que fala de "São Paulo minha cidade" uma moradora do Brás também fala com saudades do bairro, inclusive da Escola Romão Puiggari que você cita na primeira crônica do livro... http://www.saopaulominhacidade.com.br/list.asp?ID=1282
É isso, recordar é viver. Ney/
Ney
Sei bem que você é um carioca de nascimento, niteroiense de coração e paulistano nas horas vagas... rs... como sei que reconhece em minha rua sua magia, seu encanto. Já falamos muito sobre ela, não é mesmo?
Obrigada pelo endereço.
beijos
Que bom é recordar momentos do nosso crescimento. Mais uma vez, estou com "água na boca" ao recordar consigo os sabores da minha infância. E o modo de vida, quase em família, com os outros habitantes da rua. Parece que as dificuldades uniam mais as pessoas.
Beijos
Lourdes
Nâo existe mais, pelo menos nas grandes cidades, essa união entre vizinhos, essa maneira de viver uns pelos outros, como se fossem uma só família. Era bom demais, tínhamos uma inegável sensação de segurança, de apoio e realmente todos se uniam muito mais num momento de dificuldade.
Beijos
Dulce,são redenção pura para nós essas suas crônicas.
Que tempos lindos esses relatados de forma tão harmoniosa por uma pessoa de um coração gigante diante das belezas que você e sua família vivenciaram em seu cotidiano há alguns anos.
Você é fantástica nesses relatos de suas lembranças.
bjs com carinho,
heli
Obrigada, Heli, por suas palavras, por seu insentivo.Você é gentil demais e eu vou ficando "toda prosa"... risos... (brincadeirinha, viu? Fico prosa nada...)
beijos
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