floquinhos

segunda-feira, 31 de maio de 2010

De volta pro meu aconchego...

Cidade de Tiradentes, MG)

De volta ao ninho, ao meu cantinho, aos meus livros... De volta a Sampa.
Tarde meio fria, meio nublada, diferente do dia ensolarado e tépido que deixei lá por Campinas, mas estar em casa é bom demais. Passei dias maravilhosos entre meus amores de lá, sinto-me tão acarinhada quando estou com eles, mas voltar para casa sempre me deixa muito feliz. Sou bicho caseiro, gosto do meu canto, do meu convívio comigo mesma nas madrugadas insones, nas tardes que poderiam ser vazias mas que preencho com minhas músicas favoritas, com a companhia de meus escritores prediletos, dos poetas de meu coração, aconchegada na minha poltrona ou saboreando meu café no terraço, enquanto os beija-flores vêm beber o nectar especialmente preparado para eles, ouvindo ao longe o canto dos bem-te-vis, enfim, na minha rotina.

E para não dizer que hoje não lhes falei de poesia, deixo aqui uns deliciosos versos de Drummond... Vejam como tudo é relativo; enquanto para uns seria uma vida tranquila, para outros é nada mais, nada menos, do que uma pasmaceira sem fim...

CIDADEZINHA QUALQUER

Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus.

(Carlos Drummond de Andrade)

domingo, 30 de maio de 2010

O doce maio vai se despedindo...


O mês de maio já vai terminando... E vai levando com ele os lindos e ensolarados dias, tão frescos, tão azuis, as tardes amenas, feitas para sonhar... E junho vai chegando enfarruscado, prometendo cinza, anunciando a chegada do inverno. Nos meus verdes anos, junho era sinônimo de muito frio, dias garoentos, noites geladas, Noites que eram aquecidas por pesados edredons, que chamávamos de acolchoados, carinhosamente feitos por minha mãe, com muita paina e forrados por um tecido de algodão de estampa alegre. Tão quentinhos... Como quentinhas eram as meias de lã que ela tecia nas suas cinco agulhas, curtas e sem ponteiras, sem emendas, feitas com muita maestria. Quando o frio dava seus sinas de chegança lá ia ela ao armarinho escolher as lãs que a entreteriam durante boa parte do inverno, na confecção das meias que aqueceriam os pés de sua familia. E não só as meias e os edredons. Blusas, sueteres, coletes, cachecóis, tudo o que pudesse aquecer-nos, sempre foi tecido pelas mãos habilidosas de minha mãe. Fecho meus olhos e, lá está ela, após o almoço ou a tardinhs, casa impecavelmente arrumada, sentada em sua poltrona, um lindo xale que trouxera de seu amado Portugal cobrindo-lhe os ombros, ouvidos atentos aos capitulos das novelas que eram transmitidas pela Radio São Paulo, mãos ágeis correndo sobre a lã, manuseando as agulhas, fio de lá enrolado no dedo para mante-lo sob correta tensão, fio que passava pelo pescoço, enquanto eu, na mesa ao lado, fazia meus deveres de casa... Ao se aproximar a hora do jantar, encaminhava-se para a cozinha onde preparava sopas maravilhosas que nos aqueceriam e alimentariam, a cada noite uma sopa diferente, servida com pão quentinho e muita alegria, muito carinho...
Doces e aconchegantes foram os gelados dias dos junhos de minha infância... Por isso, quando maio vai terminando, é quase impossível deixar de saudar junho com um quê de saudade.

sábado, 29 de maio de 2010

Para que o sábado amanheça lindo.


Neste sábado que amanhece azul, deixo para vocês a poesia de um Mestre. E, quando se trata de um Poeta Maior, a alma cede passagem aos seus versos, absorvendo seus pensamentos, suas anguústias e sentimentos. A alma, em encantamento apenas lê, sente e se cala.

Para vocês, amigos e leitores do Prosa, com carinho, Fernando Pessoa

Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
E um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...

Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Não. Cansaço por quê?
É uma sensação abstrata
Da vida concreta —
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...

Como quê?...
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.

(Ai, cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)

Porque oiço, vejo.
Confesso: é cansaço!...

(Alvaro de Campos)

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Na caixa de recordações...


Quem de nós não tem sua caixa de recordações, seu baú de memórias, lugares onde guardam pequenas relíquias que são sinônimos de momentos vividos com amor, ternura, paixão? Nas caixinhas de recordações guardamos as lembranças físicas, uma carta, um lencinho, um espelho, uma flor ressequida pelo tempo... No baú de memórias guardamos nossos momentos, um beijo, um sorriso, uma dorida despedida, um sonho não vivido...

No poema abaixo, Florbela abre sua caixa de recordações, mostra-nos seu conteúdo, fala-nos sobre cada um deles...


Folhas de rosa

Todas as prendas que me deste, um dia,
Guardei-as, meu encanto, quase a medo,
E quando a noite espreita o pôr-do-sol,
Eu vou falar com elas em segredo ...

E falo-lhes d'amores e de ilusões,
Choro e rio com elas, mansamente...
Pouco a pouco o perfume do outrora
Flutua em volta delas, docemente ...

Pelo copinho de cristal e prata
Bebo uma saudade estranha e vaga,
Uma saudade imensa e infinita
Que, triste, me deslumbra e m'embriaga

O espelho de prata cinzelada,
A doce oferta que eu amava tanto,
Que reflectia outrora tantos risos,
E agora reflecte apenas pranto,

E o colar de pedras preciosas,
De lágrimas e estrelas constelado,
Resumem em seus brilhos o que tenho
De vago e de feliz no meu passado...

Mas de todas as prendas, a mais rara,
Aquela que mals fala à fantasia,
São as folhas daquela rosa branca
Que a meus pés desfolhaste, aquele dia...

quinta-feira, 27 de maio de 2010

A arte de amar, segundo Manuel Bandeira


ARTE DE AMAR

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação,
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

(Manuel Bandeira)




Tão modernos estes versos de Bandeira! Como se fossem escritos hoje. Hoje, quando o amor se traduz exatamente assim, por corpos que se atraem, que se unem, que se mesclam em momentos, que se desgastam e que se separam, assim, simplesmente assim...
Aquele amor-romance, pensado eterno, sentido aconchego, corações enlaçados, mãos atadas pelos sentimentos, olhos voltados para a mesma direção, parece estar desacreditado. Ou parece existir enquanto, como diz o poeta, os corpos se entendam. Depois, a busca frenética por outro amor, e depois outro, e outro, numa infinita procura, numa insaciável ânsia de ser feliz, porque a felicidade resume-se hoje em valores materiais, na busca pelo belo, nos prazeres físicos antes dos deleites da alma.
Claro que ainda há - e sempre haverá - muito corações românticos em busca do amor perfeito, alma a alma, coração a coração, corações que sonham um viver de ternura, de encantos. Serão eles os "deslocados" da vida moderna? Confesso que não sei, sempre fui assim, alma a alma, coração a coração e, mesmo neste momento de tantas mudanças de comportamento vivo de bem com a vida e comigo mesma e não desviaria um centímetro sequer de meu longo caminhar.
Gostaria de saber o que pensam a respeito os amigos e leitores daqui do Prosa, o que acham dos versos de Bandeira...

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Um passo de luz e outro passo de sombra...


Estes tem sido dias de poesia para a alma, dias em que venho trazendo comigo a doçura, a sensibilidade de alguns dos Meus Poetas do Coração. Já voltamos aos tempos da meninice de Drummond, passeamos pela ternura de Quintana, mergulhamos na sensibilidade de Bandeira e hoje voltamos aos mergulhos na alma de Cecilia. Espero que tenham sido para vocês, queridos amigos e leitores do Prosa, momentos tão prazeirosos quanto o foram para mim. Então, fiquemos com...

SOBRE UM PASSO DE LUZ E OUTRO PASSO DE SOMBRA

Sobre um passo de luz e outro passo de sombra,
Era belo não vir; ter chegado era belo.
E ainda é belo sentir a formação da ausência.

Nada foi projetado e tudo acontecido.
Movo-me em solidão, presente sendo e alheia,
Com portas por abrir e a memória acordada.

A acordada memória, esta planta crescente
com mil imagens pela selva resvalentes,
na noite vegetal que é a mesma noite humana.

Vejo-me longe e perto em meus nítidos moldes,
em tantas viagens, tantos rumos prisioneira,
a construir o instante em que direi teu nome!

Que labirintos bebem meu rosto?

(Cecília Meireles)

terça-feira, 25 de maio de 2010

São muitas, são tantas, são todas formosas... Rosas...

Uma rosa, com carinho, para os amigos e leitore do Prosa

As flores, como a música, estão sempre presentes em meus dias. Elas iluminam meus momentos, descansam meus olhos, adoçam meu coração, colorem minha vida. Amos-as a todas e algumas em especial. Orquídeas, tão elegantes, tulipas, tão altivas, margaridas, tão singelas, hortências, brincos-de-princesa, gerânios, violetas, cravos, os tão delicados miosotis, e as rosas... Ah, as rosas! Tão cheias de significados... Encarnadas como a paixão, amarelas como a desesperança, cor-de-rosa como deve ser a amizade, brancas, muito brancas como a paz... Todas tão lindas e tão perfumadas! Um perfume que traduz quietude, ternura, amor... Foram e são cantadas pelos poetas, ofertadas pelos enamorados, presenteadas pelos amigos, compradas por quem busca a harmonia, não conheço muita gente que nãs as ame.
Vejam, por exemplo, estes versos de Mario Quintana:

MOTIVO DA ROSA

A rosa, Bela Infanta das sete saias
e cuja estirpe não lhe rouba, entanto,
o ar de menina, o recatado encanto

da mais humilde de suas aias,
a rosa, essa presença feminina,
que é toda feita de perfume e alma,
que tanto excita como tanto acalma,
a rosa... é como estar junto da gente
um corpo cuja posse se demora

- brutal que o tenhas nesta mesma hora,

em sua virgindade inexperiente

Rosa, ó fiel promessa de ventura

em flor... rosa paciente, ardente, pura!

(Mario Quintana)

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Um Padre Passa Na Rua...

(Um padre passa na rua, hoje... Padre Marcelo Rossi, um pastor bem mais próximo de seu rebanho.)

Quando menina, num modo de vida muito mais tranquilo que o de hoje, as crianças costumavam brincar nas ruas, em frente as suas casas, num alarido, numa alegria bem própria delas. Brincadeiras de roda, pular amarelinha, esconde-esconde, pular corda, toda uma gama de brincadeiras que nos consumia o tempo livre, o tempo que parecia não passar. Mas estivéssemos onde estivéssemos, por mais entretidos que fosse nas brincadeiras, quando surgia lá na esquina da Rua Piratininga a figura alta e forte do Padre Jesuíno, parávamos tudo para correr a tomar-lhe a benção e a pedir-lhe um santinho. O Padre Jesuíno era o Pároco da Igreja Matriz do Brás, e era temido pela meninada, principalmente quando iam ao confessionário, já que ele sempre aplicava penitências mais severas, ainda que fossem pequeninos os pecados. Quando entrei na adolescência, já não mais correndo a pedir santinhos ao padre, já tomando-lhe a benção com mais respeito do que medo, afinal ele era um lider espiritual, e lideres espirituais não devem impingir medo e sim respeito, tinha já em meu missário tantos santinhos que nem lhe cabiam, obrigando-me a guardá-los numa latinha decorada, entre os pequenos tesouros de minha infância. E foi o mesmo Padre Jesuíno a quem escolhi para celebrar meu casamento, alguns anos depois.
E porque essa lembrança agora? Porque, folheando "Boitempo", as reminiscências de infância de Drummond, deparei-me com uns versos que fizeram-me voltar a infância, versos que deixo aqui para vocês porque sei que alguns amigos vão também viajar no tempo com eles...

O PADRE PASSA NA RUA

Beijo a mão do Padre
a mão de Deus
a mão do céu
beijo a mão do medo
de ir para o inferno
o perdão
de meus pecados passados e futuros
a garantia de salvação
quando o padre passa na rua
e meu destino passa com ele
negro
sinistro
irretratável
se eu não beijar a sua mão.

(Carlos Drummond de Andrade)

domingo, 23 de maio de 2010

Lua, estrelas, sonho, pensamento...


O domingo amanheceu azul, todo primavera em pleno outono. O dia foi de familia, muito agradável e a noite chegou iluminada por um luar de tocar o coração, apesar de não ser lua cheia. As estrelas brilham e abrem-se a confidêndias para quem as queria fazer. Aqui, da janela do quarto que me abriga, tento contar-lhes meus anseios, sob o olhar complacente de Dona Lua que parece rir de mim. A alma encabulada pede-me que feche a janela e que me recolha, diz-me que alguns sonhos são tão desvairados que devem ficar trancados lá dentro do coração... Reconheço-lhe a verdade, tento explicar-lhe que sempre me abro em sonhos assim quando Dona Lua derrama sua magia sobre mim, mas não adianta. Alma é bicho teimoso e quando diz uma coisa, não volta atrás. Assim, melhor que apague a luz e mergulhe nos lençóis que certamente se umedecerão com alguma lágrima que tentará ocultar-se entre eles... E enquanto o sono não chega, fico com um pensamento...



"Lembrar é fácil para quem tem memória. Esquecer é difícil para quem tem coração."

(William Shakespeare)

sábado, 22 de maio de 2010

Um doce pensamento

O sábado amanheceu ensolarado, lindo, um friozinho gostoso, um dia que convida ao ser feliz. E num livro de Lya Luft, uma frase que torna o dia ainda mais azul...


"O amor nos tira o sono, nos tira do sério, tira o tapete debaixo dos nossos pés, faz com que nos defrontemos com medos e fraquezas aparentemente superados, mas também com insuspeitada audácia e generosidade. E como habitualmente tem um fim - que é dor - complica a vida. Por outro lado, é um maravilhoso ladrão da nossa arrogância."

(Lya Luft)

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Uma canção de muito longe...


Quintana, em toda a sua ternura, mostra-nos nestes versos uns retalhos de sua infância. A essas lembranças ele intitulou...

Segunda canção de muito longe

Havia um corredor que fazia cotovelo
Um mistério encanando com outro mistério, no escuro...
Mas vamos fechar os olhos
E pensar numa outra cousa...
Vamos ouvir o ruído cantando, o ruído arrastado das correntes do algibe,
Puxando a água fresca e profunda.
Havia no arco do algibe trepadeiras trêmulas.
Nós nos debruçávamos a borda, gritando os nomes uns dos outros,
E lá dentro as palavras ressoavam fortes, cavernosas como vozes de leões.
Nós éramos quatro, uma prima, dois negrinhos e eu.
Havia os azulejos reluzentes, o muro do quintal que limitava o mundo.
Uma paineira enorme e, sempre e cada vez mais, os grilos e as estrelas...
Havia todos os ruídos, todas as vozes daqueles tempos...
As lindas e absurdas cantigas, tia Tula ralhando os cachorros,
O chiar das chaleiras...
Onde andará agora o pince-nez da tia Tula
Que ela não achava nunca?
A pobre não chegou a terminar a Toutinegra do Moinho,
Que saia em folhetim no Correio do Povo...!
Ia encolhida, pequenina, humilde. Seus passos não faziam ruído.
E ela nem se voltou para trás!

(Mario Quintana)

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Relendo cartas antigas...


Este é um poema que me comove. Tenho ainda comigo, atadas por um laço azul, de cetim, amareladas pelo tempo, as cartas que trocamos, meu marido e eu, quando noivos, lá nos anos dourados e fico imaginando como se sentiriam meus netos se um dia as descobrissem e quisessem le-las.
Talvez não o fizessem com o mesmo encanto, já que, certamente, não encontrariam a poética de Bandeira (será que ela existia em seus avós?); talvez as achassem recatadas, ou piegas. Talvez, como o Poeta, fizessem comparações, não sei... Não consigo imaginar qualquer dos meus netos, cabelos grisalhos, rosto marcado pelo tempo, abrindo minha caixinha de porcelana antiga, desatando o laço azul, manuseando envelopes, desdobrando amareladas folhas de fino papel e mergulhando no tempo atrás de uma simples história de amor.
Claro que não tão simples, porque foi por ela que se preparou sua existência, mas igual a tantas outras embora única... Que sensação teriam ao ler as cartas de seus avós?

Cartas de meu avô

A tarde cai, por demais
Erma, úmida e silente...
A chuva, em gotas glaciais,
chora monotonamente.

E enquanto anoitece, vou
Lendo, sossegado e só,
As cartas que meu avô
Escrevia a minha avó.

Enternecido sorrio
Do fervor desses carinhos:
É que os conheci velhinhos,
Quando o fogo era já frio.

Cartas de antes do noivado...
Cartas de amor que começa,
Inquieto, maravilhado,
E sem saber o que peça.

Temendo a cada momento
Ofendê-la, desgostá-la,
Quer ler em seu pensamento
E balbucia, não fala...

A mão pálida tremia
Contando o seu grande bem.
Mas, como o dele, batia
Dela o coração também.

A paixão, medrosa dantes,
Cresceu, dominou-o todo.
E as confissões hesitantes
Mudaram logo de modo.

Depois o espinho do ciúme...
A dor... a visão da morte...
Mas, calmado o vento, o lume
Brilhou, mais puro e mais forte.

E eu bendigo, envergonhado,
Esse amor, avô do meu...
Do meu - fruto sem cuidado
Que ainda verde apodreceu.

O meu semblante está enxuto.
Mas a alma, em gotas mansas,
Chora abismada no luto
Das minhas desesperanças...

E a noite vem, por demais
Erma, úmida e silente...
A chuva em pingos glaciais,
Cai melancolicamente.

E enquanto anoitece, vou
Lendo, sossegado e só,
As cartas que meu avô
Escrevia a minha avó.

(Manuel Bamdeira)

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Na manhã de chuva...


O dia amanheceu enfarruscado, todo cinza e a chuva resolveu lavar a cidade. A alma vai ficando encolhida, querendo colo, envolta em lembranças de outras manhãs de chuva, cheias de carinho, o coração dá uma apertadinha, os olhos tentam segurar umas lagrimazinhas teimosas que insistem em cair... Como um dia assim pede um canto, uma poltrona aconchegante, um bom livro, e entre os que trouxe comigo encontro Cecilia Meireles, os olhos vão percorrendo verso a verso, a alma vai se encontrando...
Metal Rosicler (1)
Não perguntavam por mim,
mas deram por minha falta.

Na trama da minha ausência,

Inventaram tela falsa.

Como eu andava tão longe,

numa aventura tão larga,

entregue a metamorfose
do tempo fluído das águas;
como descera sozinho
os degraus da espuma clara,

e o meu corpo era silêncio
e era mistério minha alma,
- cantou-se a fábula incerta,
segundo a linguagem da harpa;

mas a música é uma selva
de sal e areia na praia,

um arabesco de cinza
que ao vento do mar se apaga.


E o meu caminho começa

nessa franja solitária
no limite sem vestígio
na translúcida muralha
que opoem o sonho vivido

e a vida apenas sonhada.


(Cecilia Meireles)

terça-feira, 18 de maio de 2010

A Hora mágica de Drummond menino...

(Casa onde Drummond nasceu - Itabira, MG)

Pés contentes na manhã de março.
Ó vida! Ó quinta-feira inteira!
pisando a areia que canta, o barro que clapeclape,
a poça d`água que rebrilha.
Há de ser sempre assim, não vou crescer,
não vou ser feito os grandes, apressados,
aflitos, de fumo no chapéu,
esporas galopantes.
O dia é todo meu. E este caminho,
estas pedras, estes passarinhos, este sol espalhado
em cima de minhas roupas, de minhas unhas.
Tenho canivete Rodger, geléia, pão de queijo
para comer quando quiser.
Posso devassar o mato grande até Guanhães,
descobrir tesouros, bichos nunca vistos,
quem sabe se um feiticeiro, um ermitão,
a ondina ruiva do Rio do Tanque.
Igual aos índios, igual a mim mesmo, quando sonho.

{Carlos Drummond de Andrade - do livro Boitempo (1), onde o poeta discorre sobre a vida simples de sua família, no campo, sobre os dias de sua infância.}

segunda-feira, 17 de maio de 2010

O sonho de Letícia...

(Letícia, mãe, avó, bisavó... Ou, simplesmente, uma sonhadora mulher)

O domingo amanheceu radioso, ensolarado, o frio parecia ter ido embora, exatamente o ideal para uma festa de aniversário ao ar livre como a que estava me dirigindo ontem pela manhã. Era a comemoração do décimo-quarto aniversário de um querido sobrinho-neto, Luan - o neto mais velho do Walter, meu amado irmão, uma de minhas saudades...
Familia ligada a terra, com raízes sertanejas, morando ainda em uma chácara nas cercanias de Campinas, hospitaleiros como sabe bem ser a gente do interior, recebiam com um delicioso churrasco e muita alegria a quem chegasse. Para mim é sempre uma emoção voltar a casa que foi de meu irmão, casa onde cresceram meus sobrinhos, casa que nos abrigava (e abriga ainda) sempre com muito carinho. E sentada ali, ao lado da piscina, por mais de uma vez tive que segurar minhas lágrimas quando a lembrança de meu irmão vinha me envolver. Sempre que lá estou parece que o sinto por perto e ontem não poderia ser diferente.
Meu sobrinho havia contratado um dupla sertaneja para alegrar a festa. Repertório variado, ia desfilando sucessos do nosso "country", desde a música sertaneja de raiz até o chamado sertanejo universitário. Vozes bem casadas, afinadas, um show típico, complementando a alegria de todos...
Ao meu lado, Letícia, prima distante e sogra de meu irmão, uma pessoa sofrida, com problemas graves de saúde, fragilizada pela vida, mas sempre doce, cercada pelo carinho dos filhos, netos e bisnetos, esquecia as dores e o desconforto de quem se submete a hemodialises e parecia fascinada com a música, olhos brilhando, lágrimas escorrendo pelo rosto. Achando que talvez ela estivesse com dores, perguntei se poderia fazer alguma coisa para ajudar, mas ela virou-se para mim com um doce sorriso entre as lágrimas e disse" Estou emocionada, muito emocionada!... Nunca fui a um show... Sempre sonhei em ir e veja só, agora estou em um aqui na minha casa!... Nunca tinha visto um show antes. Estou tão feliz, tão emocionada..."
Vocês nem imaginam como me emocionei também, pois ver uma pessoa realizar um sonho sempre me emociona, apascenta minha alma. E era um sonho tão simples o que ela guardou escondido dentro de si por tantas décadas, um sonho que seria tão fácil de ser realizado se ela o tivesse contado aos filhos... Foi o seu momento mágico... E o que poderia ser apenas música para alegrar uma festa acabou sendo uma imensa alegria no coração de uma mulher... As vezes, pequenas coisas fazer a maior diferença...

domingo, 16 de maio de 2010

Encerrando o domingo... Mário Quintana.


A CARTA

Hoje encontrei dentro de um livro uma velha carta amarelecida.
Rasguei-a sem procurar ao menos saber de quem seria...

Eu tenho um medo
Horrível
A essas marés montantes do passado,
Com suas quilhas afundadas, com
Meus sucessivos cadáveres amarrados aos mastros e gáveas...

Ai de mim.
Ai de ti, ó velho mar profundo.
Eu venho sempre a tona de todos os naufrágios!

sábado, 15 de maio de 2010

Neste enfarruscado sábado de outono...


Um pensamento de Albert Camus...



"Já se disse que as grandes idéias vêm ao mundo mansamente, como pombas. Talvez, então, se ouvirmos com atenção, escutaremos, em meio ao estrépito de impérios e nações, um discreto bater de asas, o suave acordar da vida e da esperança. Alguns dirão que tal esperança, jaz numa nação; outros, num homem. Eu creio, ao contrário, que ela é despertada, revivificada, alimentada por milhões de indivíduos solitários, cujos atos e trabalho, diariamente, negam as fronteiras e as implicações mais cruas da história. Como resultado, brilha por um breve momento a verdade, sempre ameaçada, de que cada e todo homem, sobre a base de seus próprios sofrimentos e alegrias, constrói para todos."

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Vi uma estrela tão alta...

A ESTRELA

Vi uma estrela tão alta
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.

Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.

Por que da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Por que tão alta luzia?

E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do meu dia.

(Manuel Bandeira)

Mais um blog em recesso... Que pena!


Ah, meus amigos, algumas coisas me deixam triste, como por exemplo a quantidade de amigos daqui da blogosfera que estão resolvendo fazer uma pausa em seus blogs, segundo eles, temporariamente. Amigos que costumo ler diariamente e que vão deixando uma lacuna a cada afastamento. Alguns se dizem decepcionados, outros alegam mudança nos rumos de suas vidas, mas, de qualquer forma, eles se vão e espero que retornem o mais breve possivel.
Uma das coisas negativas desta nossa querida internet é exatamente isso. Amizades que começam e terminam num piscar de olhos, pessoas que passam a fazer parte de nossa vida diária, que nos aquecem com seu carinho, com sua sensibilidade, com sua lucidez, amigos que trocam idéias através de e-mails ou de qualquer site de relacionamento, de repente, somem, ou simplesmente passam a uma indiferença que faz dó. Tão efêmeras amizades!...
Claro que nem sempre é assim. Cultivo algumas amigas de há muito tempo, amigas conhecidas através da internet e que passaram a ser reais e fieis amigas, como a Mara, lá de Michigan, que conheci faz quase uma década, numa sala de bate-papo (no tempo em que essas salas eram mesmo para bate-papo). Por ocasião do falecimento de meu marido, há mais de sete anos, e numa das minhas viagens aos Estados Unidos para estar com minha filha e com meus netos, fui até East Lansing para conhecê-la pessoalmente, onde fui recebida por ela e pelo Jim, seu marido, com extrema gentileza, fui acolhida como pessoa da família e, no momento difícil que enfrentava então, fez uma enorme diferença. São pessoas maravilhosas, acolhedoras, amigas, mesmo. Uma amizade feita através da internet mas que se consolidou, para minha alegria. E poderia ainda citar algumas outras pessoas que se tornaram amigas, como a Ruth, a Delza, a Dulce Scalla, por exemplo, todas elas muito queridas.
Mas a que vem tudo isso? Ao fato de ter lido hoje uma mensagem de despedida da Graça Lacerda, do lindo blog "Os Botões de Madrepérola" que entra em recesso... Uma pena!... Mas ela promete voltar. Ainda bem, e espero que seja breve.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Uma Única Rosa...


"Os homens cultivam cinco mil rosas num mesmo jardim e não encontram o que procuram. E, no entanto, o que eles buscam poderia ser achado numa só rosa."

(Antoine de Saint-Exupéry)

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Na passagem do tempo...


O dia está frio e o céu que amanheceu azul já fica encoberto por algumas nuvens. Um outono com carinha de ensolarado inverno, bem próprio dos meses de maio. E maio é um mês doce, cheio de romance, de luz, de poesia. Não é por menos que, aqui no Brasil, é chamado de "o mês das noivas". Era costume as noivas escolherem um dia de maio para o casamento. São tantas as tradições que andam se perdendo no caminhar do tempo, pelas esquinas da vida... Os casamentos em maio, as festas juninas com suas quermesses, fogueiras, danças tipicas, fogos de artificio, guloseimas (pinhão cozido, milho e batata doce assados na brasa da fogueira, quentão para aquecer o corpo e a alma nas frias noites de junho,)... As festas religiosas com suas procissões pelas ruass dos bairros... A agitada vida moderna quase não deixa tempo para a singeleza das tradições do passado. Estas cedem lugar a novos hábitos, novas tradições vão se formando. E as que conseguem vencer o tempo e permanecer ainda entre nós, já não são como antes, já têm nova roupagem, novas cores. Faz parte do caminhar da vida. Mudanças vão acontecendo, novos hábitos vão se impondo, e é preciso acompanhar tais mudanças para que não se perca o bonde da história. Mas fica a saudade de tempos mais amenos, ah, lá isso fica, mesmo...

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Recolho a noite em minhas pálpebras...


Tomo nos olhos delicadamente

Tomo nos olhos delicadamente
esta noite - jardim de puro tempo
com ramos de silêncio unindo os mundos.

Tudo quanto quisesse aqui se encontra:
nos arroios de estrelas - pelos bosques
onde há risos (e próximos soluços?).

Sinto perfume e orvalho - imagens tênues
que inventa a solidão para fazer-se
de repente saudade. E vejo em tudo

essas cansadas lágrimas antigas,
essas longas histórias sucessivas
com seus berços e guerras - glórias? - túmulos.

Recolho a noite em minhas pálpebras.

(Cecilia Meireles)

A semana começa em ternura...


Canção para uma valsa lenta

Minha vida não foi um romance...
Nunca tive até hoje um segredo.
Se me amas, não digas, que morro
De surpresa... de encanto... de medo...

Minha vida não foi um romance...
Minha vida passou por passar.
Se não amas, não finjas, que vivo
Esperando um amor para amar.

Minha vida não foi um romance...
Pobre vida, passou sem enredo.
Glória a ti que me enches a vida
De surpresa, de encanto, de medo!

Minha vida não foi um romance...
Ai de mim... Já se ia acabar!
Pobre vida que toda depende
De um sorriso... de um gesto... um olhar...

(Mario Quintana)

domingo, 9 de maio de 2010

Especialmente para você, que é mãe...


Pas as mães leitoras e amigas do Em Prosa e verso, uma rosa e um abraço, com muito carinho e amizade. Que este dia tão especial seja cheinho de amor, alegria e paz, para cada uma de vocês..

Feliz Dia das Mães.


sábado, 8 de maio de 2010

Um dia dedicado ao amor



Ser mãe é, certamente, a maior dádiva entregue por Deus, ou pela natureza, ao coração de qualquer mulher. E é só quando tomamos nos braços por primeira vez o pequenino ser que geramos, que podemos compreender realmente o significado dessa dádiva. É só quando nos tornamos mães, biológica ou afetivamente, que conseguimos avaliar o tamanho do amor que somos capazes de trazer dentro de nós, porque a partir de então, a vida em si toma outro sentido e as coisas todas que nos eram tão importantes passam para um segundo plano, pois passamos a viver em função desse amor.

Um amor que nos acompanhará até a morte e mesmo a transcenderá, um amor que nos torna poço de carinho, fonte de energia; um amor que nos transforma em doces anjos quando nossos filhos buscam nosso auxílio, ou em lobas ferozes quando os sentimos em perigo; um amor que nos mantém sempre prontas para defende-los, para ampara-los, para tentar fazer deles criaturas felizes, realizadas, completas em sua essência. E a cada realização de nossos filhos, a cada momento feliz vivido por eles, a cada alegria, nós nos sentimos gratificadas. Mas a cada insucesso, a cada dor, a cada angústia que eles tenham, nós nos sentimos morrer um pouco. É quando, amparadas por esse imenso amor e nele buscando nossas forças, nós nos fazemos mais fortes para, junto a eles, tentar superar o problema. Afinal, somos mães! Mulheres que somos, cheias de qualidades, mas também repleta de defeitos, como qualquer ser humano e que, por vezes, pecamos por excesso de amor, mas não nos perdoaríamos nunca se pecássemos por omissão.

Com um grande abraço às leitoras e amigas do Em Prosa e Verso, que são mães, desejando a todas um

Feliz Dia das Mães

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Quero apenas contar-te a minha ternura...


O impossível carinho

Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah, se em troca de tanta felicidade que me dás
eu te pudesse repor
- Eu soubesse repor -
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância!

(Manuel Bandeira)

Onde estás? Inventei-te?...


Há mil rostos na terra

Há mil rostos na terra: e agora não consigo
recordar um sequer. Onde estás? inventei-te?
Só vejo o que não vejo e que não sei se existe.

Esperamos assim. Por esperança, a espera
vai-se tornando sonho afável; mas descubro
no olhar que te procura uma névoa de orvalho.

Qualquer palavra que te diga é sem sentido.
Eu estou sonhando, eu nada escuto, eu nada alcanço.
Quem me vê não me vê, que estou fora do mundo.

Lá, constante presença em memória guardada
percebo a tua essência - e não sei nem teu nome.
E à tentação de tantas máscaras felizes

se opõe meu leal, nítido sangue.

(Cecília Meireles)

quinta-feira, 6 de maio de 2010

No cotidiano de Drummond...


Tenho em mãos um dos muitos livros de Drummond, "Boitempo", onde o autor fala sobre o tempo de sua infância, sua adolescência, emolduradas pelas tradições do tempo e do lugar onde viveu. E ao deparar-me com o poema que hoje deixo aqui, revi noites de minha infância, meu pai e um de seus hábitos, que era o de deixar um copo com água no sereno da noite, para que pela manhã ela estivesse fresca... Quantas vezes, quando menina, vi meu pai fazer isso. Era quase um ritual, para ele, tomar um copo d'água ao acordar; dizia que fazia bem à saúde, que limpava o sistema digestivo e, como não havia refrigerador nas casas pobres de então, se quisesse água fresca, o jeito era deixá-la ao sereno.
E fico aqui pensando em como a sensibilidade poética consegue manifestar-se nas coisas mais corriqueiras; o que para nós, pobres mortais, seria apenas um gesto, um hábito, para Mestre Drummond era encanto, poesia, mercê essa sensibilidade tão aguçada, que ele tão bem usou para falar-nos sobre um banho de bacia, o chupar uma laranja, licoreiras ou cestinhos de costura, doces lembranças de sua infância que estão eternizadas em seus versos... Hoje, para vocês...


Copo d'água no sereno

O copo no peitoril
convoca os eflúvios da noite.

Vem o frio nervoso
da serra.
Vêm os perfumes brandos
do mato dormindo.
Vem o gosto delicado
da brisa .

E pousam na água.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Como o vento largo...


NOÇÕES

Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para navegação dos meus desejos afligidos.

Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.

Mas nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram.

Virei-me sobre a minha própria existência, e contemplei-a.
Minha virtude era essa errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.

Oh! meu Deus, isto é a minha alma:
qualquer coisa que flutua entre este corpo efêmero e precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera...

(Cecília Meireles)

A Poeira do Tempo...


"Porque entre o sim e o não é só um sopro, entre o bom e o mau apenas um pensamento, entre a vida e a morte só um leve sacudir de panos - e a poeira do tempo, com todo o tempo que eu perdi, tudo recobre, tudo apaga, tudo torna simples e tão indiferente."

(Lya Luft)

terça-feira, 4 de maio de 2010

Um menino condenado ao banho...


Um Poeta consegue transformar até um prosaico banho de bacia num poema encantador...
Está aí nosso Mestre Drummond para confirmar o que digo.



BANHO DE BACIA

No meio do quarto a piscina móvel
tem o tamanho do corpo sentado.
Água tá pelando? mas quem ouve o grito
deste menino condenado ao banho?
Grite a vontade.

Se não toma banho não vai passear.
E quem toma banho em calda de inferno?
Mentira dele, água tá morninha,
só meia chaleira, o resto é da bica.

Arrisco um pé, outro pé depois.
Vapor vaporeja no quarto fechado
ou no meu protesto.
A água se abre à faca do corpo
e pula, se entorna em ondas domésticas.

Em posição de Buda me ensaboo,
resignado me contemplo.
O mundo é estreito. Uma prisão de água
envolve o ser, uma prisão redonda.
Então me faço prisioneiro livre.
Livre de estar preso. Que ninguém me solte
deste círculo de água, na distância
de tudo mais. O quarto. O banho. O só.
O morno. O ensaboado. O toda vida.

Podem reclamar,
podem arrombar
a porta. Não me entrego
ao dia e seu dever.

(Carlos Drummond de Andrade)