floquinhos

terça-feira, 31 de março de 2009

CRONICAS DE MINHA INFANCIA (19)


O MORGADO


As famílias portuguesas do final do século XIX e início do século XX tinham quase sempre um padre entre seus membros e a de meu pai, para não fugir à regra, tinha lá os seus planos... Um dos filhos de meu avô deveria pertencer ao Clero e a escolha recaíra sobre o terceiro deles, João, no momento de seu nascimento. Assim ficara resolvido e assim seria se a família, por contingências da vida, não tivesse emigrado para o Brasil, onde aportaram nos idos de 1911. Escapou de ser padre, mas ficou conhecido para sempre, no seio de nossa família, como “O Morgado”, apelido dado a ele pelo cunhado, João Pires, homem culto e vivaz, que o queria muito bem.
Baixo, gordinho, rosto redondo e sorridente, olhos miúdos, de um castanho profundo, emoldurados por óculos de aros dourados, ralos cabelos lisos, grisalhos, assim era o alegre tio João. E sua figura roliça e ágil surge sempre em minha memória, saltitante, no centro da sala, as mãos erguidas por sobre a cabeça, estalando dedos ao som dos compassos do vira,

“Oi vira que vira, oi torna a virar,
que as voltas do vira, são boas de dar...
Maria, vamos ao vira, ai,
que o vira é coisa boa...”

ou do Bailinho da Madeira... Cantava e dançava numa alegria trazida lá de suas raízes da Ilha da Madeira e alegrava com sua presença qualquer reunião familiar.
Tanto quanto por sua alegria, era famoso também pelo apetite... Era o que se costuma chamar de “um bom garfo”. Lembro-me dele chegando em casa para o almoço, vestindo o macacão azul usado pelos metalúrgicos. Como dispunha de apenas hora e meia e gastasse uma hora para ir e vir da Metalúrgica Sta. Rosa, onde trabalhava, não tinha tempo a perder. Subia rapidamente as escadas que vinham da rua, atravessava o corredor em passos curtos e rápidos, dava um bom dia seco, que aquela hora era séria, colocava o chapéu no porta-chapéus e sentava-se à mesa já posta e com o prato prontinho para ser devorado em suculentas garfadas, em poucos minutos. Era um homem de gostos simples, gostava do arroz e feijão caseiros, temperados ao modo da roça, e mesmo que não tivesse nada como mistura, aquele seria para ele um manjar dos deuses, mas minha tia sempre fazia seu prato colocando o feijão no fundo, coberto por uma montanha de arroz branco e fumegante e no topo dessa montanha a mistura única poderia ser um bife acebolado, um filé de peixe, ovos estrelados, não importava muito. O tempero era delicioso e ele se regalava com cada bocado que levava à boca. Terminado o almoço, levantava-se da mesa, pegava seu chapéu e, colocando-o na cabeça dizia um até logo sorridente, já que, de barriga cheia, enxerga-se o mundo melhor... E lá se ia de volta ao trabalho. Ã noite gostava de sentar-se à porta de casa para dois dedos de prosa com seus vizinhos e nunca recusava uma parceria para um joguinho de sueca que disputava com os irmãos nas noites de sexta-feira ou de sábado. Joguinho que se estendia pelas madrugadas e que não raras vezes terminara em acaloradas discussões que geravam até carrancas e caras feias trocadas ao longo da semana e que se iam dissipando com o tempo para voltarem a acontecer num outro jogo, tempos mais tarde...
Uma das histórias que meu pai gostava de contar a respeito do irmão era quase uma lenda familiar. Dizia que estavam todos num almoço em casa do Tio Manuel onde fora servida uma deliciosa leitoa, cuja pele ficara em grande parte sobre a travessa, quando o Tio João, respondendo a brincadeiras sobre o quanto tinha comido, alegava que fora pouco e que poderia comer ainda a pele da leitoa, inteirinha, tão apetitosa estava. Riram e descreram, ao que ele simplesmente segurou a pele por uma das beiradas e, como se fora uma lagarta numa folha, foi começando a degluti-la. Foi indo, foi indo, foi indo, até que, num dado momento, para desespero do alegre comilão, sentiu-se entalado: a pele nem descia para o estômago, nem voltava...Tapas nas costas, trancos, tudo inútil! No desespero, meu tio teria pego uma garrafa de cerveja que se encontrava sobre a mesa e jogado pela garganta abaixo quando, com um estalido, a pele desceu e ele desengasgou, para alívio de todos. Nunca soube se realmente isso tinha acontecido ou se era uma brincadeira entre irmãos, mas sempre que perguntávamos ao nosso tio se era verdade, ele sorria e respondia: “Se eu tivesse conseguido comer a pele sozinha, teria feito melhor proveito, mas ela quis a companhia de uma cervejinha!...” e abria uma sonora gargalhada...

(Do livro:"Encontro com a menina que eu fui"
)

E O TÉDIO? QUEM DEFINE?


JEAN PAUL SARTRE


"Se você sente tédio quando está sozinho é porque está em péssima companhia".

SONHOS ? Devo mesmo falar sobre eles?


Meus sonhos? Ah, eu os trago guardados, trancados em meu coração, porque sei que são impossíveis, insanos, tresloucados... Se dali saíssem não sobreviveriam um minuto, com toda a realidade caindo sobre eles. Tão ridículos em pensar que poderiam florescer. Ridículos, tresloucados, insanos, absurdos, e sei lá quantos adjetivos mais eu poderia usar para descreve-los... Mas prefiro os outros adjetivos, os que uso para embala-los, aninha-los quando se chegam a mim nos meus momentos de solidão; ai eles são mágicos, lindos, ternos, doces, apaixonantes, delirantes,,, ai eles são meus, ai eles são “EU” – eu verdadeira, aberta para sentimentos e emoções, livre de preconceitos e medos de rejeição, Uma ponte para um momento que nunca virá, mas que ainda assim será um acalanto para meu coração.

segunda-feira, 30 de março de 2009

CRONICAS DE MINHA INFANCIA (18)


MEU TIO


“Que el mundo fue y sera una porqueria
Ya lo sé...
¡En el quinientos seis
y en el dos mil también!
Que siempre ha habido chorros
maquiavelos y estafaos,
contentos y amargaos,
varones y dublé...”

Assim começa a letra de Cambalache, um tango que trago em minha memória associado à presença de um tio muito querido. Quando, nas reuniões de família, pedíamos a ele que cantasse, ele abria uma voz límpida, forte, afinada, enchendo a sala com os irreverentes versos desse tango criado na primeira metade do século XX mas ainda muito atual no despertar do novo século.
Meu tio Antonio era o irmão caçula de meu pai e sempre foi boêmio, amante das coisas boas da vida, incluindo-se aí belas mulheres. Freqüentador assíduo dos cabarés da época, bonito, muito bonito, trazia a sensualidade no olhar, no sorriso alvo, nos gestos. As mulheres derretiam-se diante dele e ele, claro, não se fazia de rogado. Bem falante, elegante, vestia-se com apuro, enfim, “um pecado de homem”.
Ninguém entendia muito o casamento dele com a Tia Maria, que era, a bem da verdade, a bondade em forma de mulher. Todos nós a queríamos muito bem e a forma como ele a tratava revoltava toda a família, mas o que tinha em bondade, ternura, faltava-lhe em beleza, em presença. E isso incomodava bastante seu marido. Nascida e criada no bairro do Brás, entre imigrantes italianos, trazia aquele sotaque arrastado, pronuncia incorreta, palavras trocadas, enfim, completo oposto dele, tão cioso de sua bela presença. Mas certamente, e apesar de tudo isso, ele sempre teve um amor imenso por ela. E como deixar de amar tão doce criatura? Sair com ela, porém, exibi-la para os amigos, isso ele não poderia fazer... Contradições... Terríveis contradições.
Assim como nós, toda a vizinhança aprendera a querer bem minha doce tia e quando saia para as compras ia parando em portas e janelas, cumprimentando uns, tirando dois dedinhos de prosa com outros, tornando a simples obrigação das compras um agradável passeio matinal. E quantos conhecidos, quantas amigas!...
Numa determinada Sexta-feira Santa, não se sabe porque cargas d’água, ele resolveu acompanha-la à Procissão do Senhor Morto. E naqueles tempos, a igreja católica era soberana, a população participava dos cultos e dos ritos, as crianças vestiam-se de anjo, lindo anjos em suas batas longas, ostentando asas brancas nas costas e aureolas na cabeça; os jovens eram os apóstolos de Cristo, e havia ainda as três Marias e a Verônica. Ah! A Verônica! Sempre uma voz maviosa que todos ouviam embevecidos enquanto ela desenrolava aquele pano com a figura do rosto de Jesus estampado no que, nós crianças, achávamos que fosse Seu próprio sangue. E lá ia minha tia, toda orgulhosa, apoiada no braço do marido, rezando ou cantando, conforme o momento pedisse, mas... a todo o momento precisava interromper sua reza para cumprimentar um conhecido? Uma amiga?
- Boa noite D. Júlia, este é o Antonio, meu marido...
- Oi, Seu João, o senhor conhece meu marido?...
- Ah, D. Mafalda, hoje meu marido veio também...
E assim foi caminhando e meu tio cada vez mais irritado. Onde já se viu uma coisa dessas? Era um ato religioso ou não? Será que ele nem podia se concentrar na oração? (difícil acreditar que ele estivesse preocupado com as orações, mas, em todo caso...). Querendo acabar com aquele “oi, como vai? Prazer é meu? Olá, boa noite D. Filomena...” virou-se para a mulher e exclamou:
- Mas você conhece todo o mundo? Só falta dizer que conhece também o padre!
Exatamente nesse momento, uma figura atravessa a multidão e diz:
- Boa noite, Dona Maria. Que bom que a senhora veio...
Ao que ela respondeu:
- Boa noite, Padre Antonio, o senhor já conhece meu marido?

(Do livro "Encontro com a menina que eu fui"


UM PENSAMENTO (5)


(Monet - Moinho de Vento)


ÉRICO VERÍSSIMO

"Quando os ventos de mudança sopram, umas pessoas levantam barreiras, outras constroem moinhos de vento."

domingo, 29 de março de 2009

UM PENSAMENTO (4)

(minhas violetinhas estão lindas...)

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

"Fácil é ser colega, fazer companhia a alguém, dizer o que ele deseja ouvir. Difícil é ser amigo para todas as horas e dizer sempre a verdade quando for preciso. E com confiança no que diz."

CRONICAS DE MINHA INFANCIA (17)


UM IRMAO QUE E SAUDADE...


A madrugada daquele 31 de julho estava fria mas, mesmo assim, fui tirada da cama e levada, tiritante, para a cozinha, lá nos fundos do velho casarão, onde me foi servido um chocolate bem quentinho acompanhado de pão com manteiga. Minhas tias, em alvoroço, iam e vinham pelos corredores da casa numa azáfama que eu não entendia, em meus verdes 10 anos de vida.
Meu pai, nervoso, pôs o chapéu na cabeça e saiu para voltar uma meia hora depois, acompanhado por uma senhora gorducha e sorridente, que carregava uma sacola nas mãos onde supus estivesse trazendo meu irmãozinho. Dona Dolores era a parteira que já me ajudara a chegar a este nosso mundo e que agora viria cumprir sua doce missão mais uma vez. Eram tempos em que as crianças ainda acreditavam que os bebes viessem em bicos de cegonha - mas cegonha, no Brasil? Pois é! Para o imaginário infantil tudo é possível e as tradições vieram com os europeus e aqui ficaram arraigadas entre nós - e como eu não conseguisse ver nenhuma ave sobrevoando os céus paulistanos naquela manhã, só pude supor que meu irmão fora amparado pela parteira, em vôo rasante da cegonha, e trazido, dentro da sacola para os braços de minha mãe.
A alegria estampada no rosto de meu pai, os abraços, os parabéns, uma festa que se estendeu por vários dias em comemorações regadas a bebida e que se estenderiam por mais outros tantos dias para festejar o nascimento da Rosa Maria, filha do Tio Antônio. Assim, em uma semana, dois novos seres vieram alegrar ainda mais aquela casa já tão cheia de risos e de música.
Com o passar dos anos, aquele garotinho muito lindo foi se mostrando uma personalidade introvertida, mas viveu seus anos de infância como todos nós, solto, alegre, entre as velhas ruas do Brás, jogando bola, brincando de mocinho e bandido, correndo atrás de balões, empinando pipas, freqüentando as matinês do Cine Ideal... Ao chegar aos dezoito anos, teve seu primeiro emprego, ganhou seu primeiro carro e descobriu sua primeira e única paixão, Maricy, já naquele tempo uma graça de menina, prenunciando a linda mulher que seria (e que ainda é).
Casaram-se alguns anos depois, tiveram três lindos filhos, foram felizes por uns tempos, mas como costuma acontecer, a vida foi preparando peças e armadilhas que ele, na sua timidez, não sabia desmanchar e, encontrando no álcool uma falsa segurança, um falsa extroversão, foi se deixando levar, afundando seus sonhos e suas aspirações nesse caminho sem volta que se faz imperceptivelmente e que quase nunca permite a quem o percorre uma volta honrosa. Quando se deu conta do que fizera a si mesmo, já era tarde demais. Não vou, aqui, buscar motivos ou razões, mesmo porque não me sinto suficientemente capaz para julgar os erros ou os acertos de quem quer que seja. Nem vou procurar as raízes de tudo isso, não vale a pena, não o traria de volta mesmo... Era um homem maravilhoso, um ser humano muito raro e quando partiu, deixou atrás de si um rastro imenso de saudades... Deixou uma legião de amigos... Deixou um enorme vazio em minha vida, já que o queria mais do que a um irmão... eu o queria como a um filho.
Tive o privilégio de tê-lo como irmão, alegrei-me com o seu nascimento, segui muito de perto toda a trajetória de sua vida, acompanhei-o até sua última morada com o coração em frangalhos, com a alma dilacerada pela dor, tentando dar forças à minha pobre mãe que por segunda vez chorava a perda de um filho.
Nem só de alegrias são feitas as minhas lembranças... nem só de doces momentos está preenchido meu baú de memórias...

Do livro: "Encontro com a menina que eu fui".



OS SONHOS QUE QUERO TER...

(Clique na imagem para amplia-la)

No silêncio da madrugada cortado apenas pelo maravilhoso violino de Andre Rieu, parece que os sentimentos ficam mais aguçados, a saudade aperta mais o peito, as lembranças chegam mesmo que se tente impedir... E uma imensa nostalgia envolve cada centímetro de meu corpo...
Caminho pela casa, inquieta, sento-me no terraço, meus olhos se fecham a sua simples lembrança, enquanto sinto a musica que soa baixinho na noite me envolver. Queria não pensar, mas não consigo, queria não lembrar, mas as lembranças fazem parte de mim... Adivinho sua voz que me chama em sussurro, mas sei que é apenas delírio. Chego quase a sentir o toque de sua mão em meus cabelos, pressinto o seu respirar... Loucura!...

Deixo-me ficar ali, imóvel, lágrimas de saudade lavando minha alma até que o frio da noite vai aos poucos me trazendo de volta a realidade... A cidade parece dormir embalada pelo cântico suave da chuva que cai mansamente. Minha alma, já um pouco mais serena, acomoda-se em seus domínios e me permite tentar dormir.
Apago os quebra-luzes, vou para meu quarto em busca de umas horas de sono aonde possivelmente sua presença se fará inteira nos sonhos que quero ter...

Dulce Costa
Na madrugada de vinte e nove de março do ano de dois mil e nove.

sábado, 28 de março de 2009

CRONICAS DE MINHA INFANCIA (16)


FIGURAS DE MINHA RUA

Hoje, fechadas em apartamentos ou enclausuradas atrás de muros altos, por segurança, muitas pessoas deixam de viver momentos de descontração, deixam de conhecer seus vizinhos, nem tomam conhecimento ou por vezes nem sabem da incrível variedade de tipos humanos que mora ou circula pelas proximidades, mas ao abrir meu baú de recordações vou caminhando pelas ruas de minha meninice e adolescência, indo e vindo pelas velhas ruas do velho bairro onde nasci, deparando-me a cada esquina com um não mais acabar de tipos. Curiosos uns, melancólicos outros, cada qual, porém, marcando seu espaço em minhas lembranças, formando uma galeria de personagens típicos de uma época.
Romeu era uma figura melancólica. Beirando talvez os 50 anos, muito alto, magro, parecia saído de um figurino de moda masculina dos anos 20. Vestia sempre terno escuro, marrom, marinho ou preto, sapatos bicolores, gravata larga, de seda, colarinho impecável. Sempre de chapéu, que colocava meio de lado sobre a cabeça, com a parte da frente da aba dobrada para baixo, lembrando a figura de um cantor de tangos, trazia debaixo do braço esquerdo uma revista dobrada e, entre os dedos da mão direita uma sofisticada piteira que levava à boca com afetação. Lá vinha ele, todas as tardes, religiosamente, lá do começo da rua, em direção à Rua Piratininga, em seu passo de “gabiru”, como se costumava dizer então. E, à medida que se aproximava, o silêncio ia se fazendo nas rodas das jovens ou das mulheres que, ao cair da tarde, costumavam tomar a fresca, ou colocar em ordem suas fofoquinhas, enquanto esperavam a chegada dos maridos para o jantar. Cabeça baixa, nenhuma delas ousava botar os olhos em tão “elegante figura”, sob pena de ouvir uma torrente de palavras chulas que sempre eram acompanhadas por gestos obscenos que ele soltava enquanto passava, para depois seguir impávido seu caminho rumo ao nada. Nunca soubemos quem ele realmente era, de onde vinha, nem para onde ia. Diziam que era louco, que já estivera até no “Juqueri”, por isso relevavam seus maus modos... Não era um Dom Quixote, sequer era um cavalheiro. Era apenas uma triste figura...
Bem diferente era aquele homem baixo, meio careca, gestos delicados, olhar doce, cujo nome ficou para mim perdido no tempo. Afinal, aquela figura estava colocada em lugar errado. E num tempo onde o homossexualismo era tratado como aberração mesmo, pelas classes menos favorecidas, onde não havia nem respeito nem benevolência para com eles, aquela pobre criatura era ridicularizada, servindo de chacota para todos aqueles que costumavam gastar seu tempo nas rodas dos botequins daquela rua.
Imaginem que aquele homenzinho de gestos afetados, trejeitos delicados, caiu de amores por meu tio, machão convicto, sonho secreto de muitas mulheres que de tão sérias nem o cumprimentavam para não se sentirem em tentação!... E quando ele passava, de volta do trabalho, lá estava o pobre apaixonado, olhando com olhos de cobiça, suspirando ao vê-lo passar e emitindo um triste: “ah, Toninho, Toninho do meu coração... porque Deus não me fez mulher para ter o direito de te amar?”. Meu tio, sério, fingia nem perceber a presença da pobre criatura, mas mesmo assim não conseguia escapar às brincadeiras e gozações dos amigos que, às gargalhadas, divertiam-se com tão constrangedora situação. Um dia, aquele homenzinho simplesmente sumiu. Cansou de ser objeto de escárnio. Resolveu dar novos rumos a sua vida, quem sabe? Mas durante muito tempo ainda, meu tio teve que aturar as brincadeiras de mau gosto dos “amigos”...
Minha rua era um lugar tão cheio de tipos curiosos... Imaginem que tínhamos um visinho que era da Polícia Secreta! E todo mundo sabia que ele era “Secreta”! Nas tardes de verão ele costumava ir até a leiteria da esquina, muitas vezes vestindo pijama, calçando chinelos, para dois dedinhos de prosa com os amigos ou mesmo com o proprietário, e os garotos da rua ficavam olhando, fascinados, aquela figura forte que tomava pelo gargalo da garrafa, quase de uma só vez, um litro de leite inteirinho, enquanto ouvia ou contava histórias. Afinal, aqueles meninos estavam frente a frente com um “James Bond” tupiniquim!

Inesquecíveis figuras de minha rua...

(Do livro "Encontro com a menina que eu fui")



DIANTE DE UMA FOTO...


(Foto: Maria Emilia - http://talqualsou.blogspot.com/ )

Absorta na beleza que se descortina nesta foto de um entardecer, nos tons que o cair da noite derrama sobre as flores, no jogo de luz e sombra que se forma diante de meus olhos, deixo que minha alma encantada se desprenda de mim e vague mansamente entre os canteiros, passeie sua saudade por entre as flores... E na imensa solidão que me consome, choro sua ausência...

sexta-feira, 27 de março de 2009

CRONICAS DE MINHA INFANCIA (15)


O CARIOCA


Algumas pessoas tornam-se inesquecíveis, às vezes, por um gesto, uma atitude ou simplesmente por algumas palavras colocadas num momento preciso. Pessoas que por vezes eram olhadas com desprezo ou mesmo indiferença passam a serem vistas, então, por um outro prisma.
Tenho, no baú das minhas memórias, personagens as mais variadas, indo do triste ao histriônico, aí incluídos os briguentos e os conciliadores, os honestos e os pilantras, os amigos e os falsos amigos, enfim, toda uma galeria de tipos os mais variados. Afinal, são tantos anos de janela... Tantos ficaram esquecidos, mas o Carioca sempre volta à minha lembrança.
Nunca cheguei a saber seu nome. Nem saberia de onde veio, não fosse o apelido que o acompanhou para sempre: Carioca. E sua figura ressurge por entre a névoa formada pelo tempo como um homem de estatura mediana, pele morena, cabelos crespos, grisalhos, fino bigode bem ao gosto dos anos 50, voz rouca e sorriso fácil. Trabalhava nas feiras como empregado de uma barraca de frutas e vivia pelos arredores, em um pequeno quarto alugado, num dos muitos cortiços que havia no Brás de antigamente.
Quando sóbrio, era uma pessoa tímida, mas era tão difícil vê-lo sóbrio!... Quando voltava da feira já parava no bar da esquina e “abastecia” sua personalidade com a extroversão conseguida em cada copo de cachaça. E, lá pelas 4 da tarde já estava um outro homem, falante, alegre, chegando às raias da inconveniência. E ele que tinha o maior respeito pelas jovens do bairro, transformava-se então num galanteador atrevido, porém nunca desrespeitoso. As moças, por aquela época, tinham por hábito sentarem- se à soleira das portas das casas para, entre amigas, trocarem confidências e quando percebiam a presença do Carioca, já se preparavam para as declarações de amor que certamente viriam e, mal ele começava a desfiar seu rosário de paixões, levava um solene “ô Carioca, você não se enxerga, não? Vai amolar o outro!...” ao que ele respondia sempre com um “Tu despedaças meu coração, brotinho... faz isso não!...” e lá se ia em busca de novo objeto de paixão... Lembro-me dele também, tentando nadar nas poças d’água formadas pelas chuvas de verão, e era tão prazeroso seu gesto que tínhamos a impressão de que, para ele, estava naquele momento dando largas braçadas no mar de sua Copacabana...
Uma de minhas melhores amigas era também minha vizinha. A mãe dela fora acometida por um derrame cerebral e acabou falecendo. Os velórios de então aconteciam nas próprias casas. A sala principal era preparada para que o corpo fosse velado. As janelas eram recobertas com panos negros, as cadeiras colocadas junto às paredes e o caixão colocado sobre a mesa, no centro, com as velas acesas, o crucifixo, formando um ambiente realmente muito deprimente, enquanto na cozinha rolava o cafezinho e a cachaça para esquentar a noite. E, naquele clima de tristeza estávamos todos tentando dar à família um pouco de conforto quando o Carioca entrou na sala. O mal estar foi geral porque se percebia claramente que ele já não estava sóbrio. Chegou-se para perto do caixão, persignou-se, fez uma oração em voz baixa e começou a falar, entre lágrimas, da dor que lhe ia n’alma naquele momento. Chorava a dor dos filhos que, tão cedo haviam ficado sem a mãe tão querida, mas pedia a eles que, em sua dor, entendesse que tiveram um presente lindo de Deus na presença até aquele dia da mãe que então partia. Que imaginassem como teria sido pior se, como ele, crescessem nas ruas, ao Deus dará, se como ele nem mesmo soubessem quem fora sua mãe, se como ele nunca tivessem tido o afago, o beijo de boa noite, o colo aconchegante... E foi por ai afora, com tanto sentimento, com tanta dor no olhar que quando percebemos, estávamos todos chorando, junto com ele. E naquele momento, não pranteávamos nossa vizinha, nem os filhos pranteavam sua mãe. Chorávamos todos por aquele homem que tão pouco conhecíamos, por aquela criatura de Deus que a vida jogara ao léu, que crescera sem eira nem beira e, mesmo assim, nunca deixara de ter dentro de si uma imensidão de amor. E naquele momento o Carioca passou a ser visto com outros olhos. Deixou de ser olhado como o bêbado da rua. Tornou-se um de nós.

Do livro "Encontro com a menina que eu fui"


UMA DOCE MANHÃ


Um dia de outono com ares de primavera. O vento brando balança as folhas das árvores, o sol esparrama-se por sobre a cidade, o céu de um delicado azul, sem nuvens... E essa música que chega doce, trazendo lembranças de outras manhãs assim, cálidas, suaves, tão parecidas com esta... Tão parecidas e ao mesmo tempo tão diferentes. E essa diferença repousa na ausência, na falta do olhar cheio de amor, do toque das mãos, do abraço amoroso, da voz acariciante contando coisas, do ombro aonde encostava minha cabeça sentindo que o mundo estava em paz... E essa diferença aperta meu coração, entristece minha alma, faz-me sentir meio perdida ante este vazio que se formou em torno de mim...
O sol vai se esparramando por sobre a cidade... A saudade vai se esparramando por sobre mim...


quinta-feira, 26 de março de 2009

CRONICAS DE MINHA INFANCIA (14)


O ENGENHEIRO


Era o início dos anos 50, dourados anos de minha infância e adolescência.
Morávamos no casarão onde nasci, um sobrado amplo, que vive na minha memória. Eram tempos difíceis, o que obrigava as famílias menos favorecidas a se juntarem numa mesma casa para poderem sobreviver com um pouco mais de dignidade. Assim cresci em companhia de meus primos, além de minha irmã, já que meu irmão só nasceria alguns anos depois. Minha irmã, Elza, e minha prima, Belinha, teriam uns 16 ou 17 anos e, como todos os jovens, costumavam fazer o “footing” aos sábados e domingos à noitinha, na Avenida Rangel Pestana. Hoje os jovens vão para o shopping centers.
Mas eu era apenas uma “fedelha”, uma pirralha que acompanhava os preparativos das duas, antes de saírem, diante do espelho, imaginando que quando chegasse meu tempo de “passear na avenida” também usaria o pó de arroz Lady e passaria nos lábios o batom Naná. O perfume que impregnava a sala não era outro senão o Tabu... E elas faziam-se lindas, perfumadas... E lá se iam com a recomendação das mães:
- Às nove, em casa. Se passar um minuto disso, vocês não saem mais.
E assim era, realmente. Imaginem as meninas de hoje cumprindo uma ordem dessas! Às nove elas estão começando a pensar em sair...
Naquele domingo de verão, cumpriu-se a mesma rotina e, lá se foram sorrindo para o tão esperado passeio. A avenida era o centro comercial do bairro e lá se instalaram filiais de lojas muito conceituadas na época como a Clarck, a Pascoal Bianco e até as Lojas Americanas, que acabavam de ser inauguradas. Os rapazes postavam-se junto às lojas ou ao meio fio da calçada e as moças iam e vinham, assim como quem não quer nada, conversando entre si, braços dados, num meio sorriso, as mais tímidas, ou num olhar mais atrevido, num sorriso mais aberto, as mais arrojadas. E os “flertes” corriam céleres, estendendo-se às vezes por muitas semanas até que o rapaz tomasse coragem e fosse falar com a moça, iniciando um namoro. E desses namoros surgiram vários casamentos... Minha prima vinha encantada com um rapaz, alto, esbelto, devidamente engravatado, cabelos meticulosamente arranjados, fixados certamente com Gumex (Dura lex sede lex, no cabelo só Gumex) ou Glostóra, um “primor” de rapaz... e viu, coração aos pulos, seu sonho se realizar. Ele veio, apresentou-se, disse ser engenheiro, falou da família, do lugar onde morava, conversou sobre tantas coisas e, finalmente, pediu-a em namoro. Naquela noite ela nem conseguiu dormir de tanta emoção... Além de tudo, era engenheiro... Imagine só, ela namorando um engenheiro! As amigas iam morrer de inveja!
Na segunda feira estavam as duas ainda a comentar os acontecimentos da véspera, eu a escutar, embevecida, sonhando com quando chegasse a minha vez de namorar um engenheiro, talvez até um médico, quem sabe? quando se ouviu o pregão do garrafeiro. Era muito comum passarem homens comprando garrafas, que depois revendiam para fazer algum dinheiro, exatamente como fazem hoje os catadores de papel.
- Garraafeeeeeeeiiiiroooooooo... Compro garrafas, jornais e revisssssstasssssss... Olha o garrafeeeeeeeeeiiiiiiiiroooooo...
Minha mãe sempre juntava as garrafas e os jornais já lidos para vender e ao ouvir o pregão pediu que eu descesse e pedisse ao homem que subisse para pegá-los. Assim foi feito e, ao chegar á sala com o rapaz, percebi que minha prima arregalou os olhos, as faces lívidas a boca aberta num Ohhhhh! quase inaudível... O rapaz parou, como que petrificado, por uns instantes e depois virou nos calcanhares, andando aos trambolhões, quase despencando pela escada abaixo enquanto minha irmã, sem se conter, entre gargalhadas, repetia:
- O engenheiro!!!! Prima, olha lá o seu engenheiro!!!...

(Do livro "Encontro com a menina que eu fui"


UM PENSAMENTO



PABLO NERUDA


O AMOR

Amo o amor que se reparte em beijos, leite e pão.

Amor que pode ser eterno, mas pode ser fugaz.

Amor que se quer liberar para seguir amando.

Amor divinizado que vem vindo. Amor divinizado que se vai.


CRONICAS DE MINHA INFANCIA (13)


LEMBRANDO MINHAS PROFESSORAS


Final de inverno, o sol brilha radioso por entre os prédios, dando á tarde que começa a cair um nostálgico tom de primavera e o som das crianças que deixam a escola após mais um dia de aulas enche o ar de alegria e musicalidade... Como pássaros que tivessem ficado retidos em gaiolas, ganham a rua como se ganhassem a liberdade dos ares sem fim, rindo, falando, gesticulando, algumas até se despicando, e vão passando por sob minha janela trazendo a meu coração lembranças de tardes iguais a estas onde, como elas, despreocupada, trazia em mim tantas esperanças no porvir...
Vejo as crianças de hoje com tantos afazeres, tantas opções de lazer, tantas escolhas, que não posso deixar de comparar os caminhos que se abrem diante de meus netos com o que tinha aberto diante de mim. Meu caminho não tinha atalhos nem muitas saídas. Crescendo num bairro operário, povoado por imigrantes que, devido às dificuldades da vida, nunca tiveram tempo nem chance para estudos, às crianças do Brás não era exigido mais do que uma nota mediana que as fizessem passar de ano; não tinham o privilégio de crescer entre livros nem de ouvir histórias da humanidade; Os pais mais “cultos” tinham por hábito a leitura de jornais (na maioria das vezes, esportivos), e assim, os pequenos sequer sabiam que com um pouco de esforço poderiam, talvez, chegar a estudar um outro idioma ou mesmo ter acesso a bibliotecas, exposições, museus, dando às suas almas o alimento indispensável para uma compreensão maior e melhor da vida.
Nossos horizontes eram tão limitados que o sonho maior de uma garotinha, quando o tivesse, era o de ser professora, porque sua professorinha era a pessoa mais importante que ela conhecia, não por ser quem lhe ensinasse as primeiras letras ou a tabuada, mas porque ninguém, aos olhos da criança que a comparava com as pessoas que a cercavam, sequer chegava aos pés daquela abnegada mulher que dedicava sua vida á formação dos pequenos seres que lhe eram confiados. Ser professora, naqueles tempos, era um privilégio, embora sua vida não fosse nada fácil, porque o salário era pequeno, o que a obrigava a viver modestamente, mas sempre com muita dignidade. Por isso, eram olhadas com admiração e respeito. Certamente ainda encontramos, nos dias de hoje, muitas e muitas professorinhas com o mesmo senso de responsabilidade, com o mesmo ideal de vida daquelas maravilhosas mulheres que ajudaram a formar caráter e a moldar o destino de várias gerações.
Tenho especial carinho por minha primeira professora, Dona Adelaide, uma senhorinha delicada que usava de muita autoridade e firmeza no trato com os alunos, sem perder a doçura da voz. Através das brumas do tempo, posso vê-la ainda, cabelos grisalhos, arrumados num coque preso à nuca, óculos que não conseguiam esconder a vivacidade de seus olhos e, não sei se realmente usava sempre roupas escuras mas é assim que me lembro dela, num vestido de seda azul marinho com florinhas brancas estampadas, mangas compridas, gola arredondada, presa por um camafeu. Mas o que me intrigava muito era o fato dela colocar outro par de óculos sobre os que sempre usava, para poder ler de perto. Aquilo para mim era surpreendente e a característica principal dela, pelo menos naquela época. Tive algumas outras professoras que também ficaram carinhosamente guardadas em minha memória, como Dona Mocinha, Dona Odete, que como Dona Adelaide eram também mestras do Grupo Escolar Romão Puiggari no final dos anos 40, início da década de 50.
Depois fui para a Escola Industrial Carlos de Campos onde, além das matérias regulares, tínhamos também formação profissional e onde tive também professoras que marcaram minha vida, como as duas professoras responsáveis pelo curso de flores, e que eram o total oposto uma da outra. Enquanto uma era delicada, gentil, de fala mansa e olhar tranqüilo, a outra era extrovertida, bem falante, e parecia trazer um vulcão dentro do olhar. Claro que temperamentos tão diversos, só poderiam gerar conflitos que quase sempre eram diluídos mercê a mansidão de alma da primeira. Mas um dia, as coisas chegaram a um ponto sem volta e explodiu uma guerra de palavras trocadas entre lágrimas e sussurros de uma e gritos e gestos de outra que, não se conformando com as lágrimas que rolavam pelo rosto da opositora, que aos olhos das alunas poderia fazer dela uma vítima, saiu da classe vociferando:

- Lágrimas de crocodilo!... Agora se faz de vítima e derrama lágrimas de crocodilo!... Crocodilo? Não, crocodilo é muito pra você...
E buscando lá no fundo da alma suas raízes espanholas, encheu o peito e, mãos na cintura, bradou em alto e bom tom antes de virar as costas e sair desabaladamente em direção à porta da oficina de aula:
- Lagartija!... Lagartija!... Eres una lagartija...
Minhas queridas mestras! Saudades imensas de todas essas mulheres a quem devo grande parte de minha formação e que trago presentes em minhas lembranças... Como gostaria de poder abraçar cada uma delas e agradecer pela parte de meu caminho que lhes coube e que elas tão bem souberam aplainar para que meus passos fossem mais seguros em direção ao dia de hoje!...

(Do livro “Encontro com a menina que eu fui”)

quarta-feira, 25 de março de 2009

MAIS UM SELINHO ESPECIAL


Hoje preciso agradecer a Ana Martins, do lindo blog Ave Sem Asas, que me presenteou com um prêmio, esse miminho em forma de selo, o qual, muito feliz, agradeço.

As regras do prémio são as seguintes:
Escrever uma frase, citar um título ou contar uma historia sobre seis assuntos nos seguintes segmentos: VIDA, CINEMA, LITERATURA, VIAGEM, AMOR E SEXO;·
Convidar seis colegas de blogs que você realmente considere femininas e inteligentes;·

Linkar o blog que a convidou;·

Postar as regras para que outros as repassem;·

Inserir o selinho que você recebeu.
Então, vamos lá...

VIDA: (a sensibilidade de Fernando Pessoa)


Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.


CINEMA: Encantamento, magia...

LITERATURA:
Mergulhar em outros mundos, outras vidas, outras almas...

VIAGEM:
Conhecimento, cultura, entretenimento, puro prazer.

AMOR:
A essência da vida. Sem ele a vida perde a cor, a luz, a própria razão de ser

SEXO: O doce complemento do amor.


Para não cometer injustiça, posto que todas as minhas amigas, cujos blogs estão citados na coluna da direita, são inteligentes e femininas, deixo o convite aberto para todas. Sintam-se convidadas, amigas...

UM SENTIMENTO


CECILIA MEIRELES

"Quando penso em voce, fecho os olhos de saudade"

CRONICAS DE MINHA INFANCIA (12)


NESTA RUA, NESTA RUA, TEM UM BOSQUE...


"Nesta rua, nesta rua tem um bosque,
Que se chama, que se chama Solidão.
Dentro dele, dentro dele mora um anjo
Que roubou, que roubou meu coração..."

Cantigas de roda, doces cantigas que fazem parte da infância de todos nós, geração após geração. Cantigas que aprendi com minha mãe, ensinei a meus filhos e ouço-as agora, comovida, nas vozinhas doces de meus netos...Cantigas que abrem meu baú de recordações e que me trazem de volta tantas pequenas amigas que o tempo levou consigo, tantos momentos, tantos risos, tantas lágrimas...
Brincávamos soltas pela calçada de nossa rua, íamos juntas à escola, ao catecismo, às matinês do Cine Ideal. Duas em especial foram quase irmãs. Uma já é saudade, só saudade, partiu num raio de luz, ainda tão cheia de sonhos e de planos, começando apenas a viver a maturidade, essa fase tão bonita da vida de uma mulher... A outra, perdemo-nos nas atribulações da vida, no dia a dia de cada uma, nos caminhos diversos e distantes que trilhamos. Mas tenho-as sempre em minhas lembranças. Das brincadeiras de roda, de pular corda, jogar amarelinha quando crianças, até os doces primeiros anos da nossa juventude, nossas deliciosas tardes de domingo jogando peteca, ouvindo música, trocando as primeiras confidências, estávamos sempre juntas.
Minha mãe nunca foi de bater em filho, mas lembro-me muito bem, e ainda chego a sentir o ardor em minha perna, do dia em que, talvez nervosa por problemas maiores, irritada, ou mesmo apenas e simplesmente cansada das artes das crianças, ela exerceu seu direito de mãe e aplicou-me o que ela considerou ser um corretivo justo, mas eu considerei uma grande injustiça. Era uma tarde ensolarada, estávamos em férias escolares e, como sempre, brincávamos em frente à porta de entrada da casa. Naquele tempo cozinhava-se em fogões a carvão e nós, crianças, costumávamos usar pedaços desse carvão para desenhar ou escrever na calçada, além de marcar o jogo de amarelinha ou o de caracol. Brincáramos de todos eles e estando já um tanto cansadas resolvemos sentar no chão e simplesmente desenhar. Comecei desenhando uma casinha, um sol, e não me dei conta do que minha amiga desenhava quando ela chamou minha atenção para o que fizera. Mesmo através da névoa do tempo, ainda vejo aquele monstrengo desenhado na calçada e ouço a voz dela, em caçoada, dizendo: “é você, é você... olha a cabeça, cheia de piolhos... é você!” Ah, que raiva! O monstrengo, eu até aceitava, mas os piolhos? Os piolhos não! Levantei-me como uma pequena fera e, agarrando-a pelos cabelos, joguei-a ao chão e fugi para casa, subindo as escadas correndo e ouvindo os gritos dela, chamando pela minha mãe e dizendo: ”Dona Inês, eu não fiz nada, nem xinguei nem nada e a Dulce puxou meu cabelo...“ Tomada pelo susto, escondi-me debaixo da mesa, achando que estava protegida lá, só que minha mãe veio em seguida, ergueu a tolha e aplicou-me um solene tapa na perna. As marcas de seus dedos ficaram marcadas em minha coxa. Chorava de raiva e de dor, principalmente porque ouvia os gritos que vinham da rua: “bem feito!... bem feito!... apanhou... quem mandou puxar meu cabelo?...” Depois desse episódio ficamos três ou quatro dias sem nos falarmos, mas nossa amizade era maior que nossa raiva... Logo estávamos de novo brincando juntas nas calçadas de nossa rua. Hoje ela é saudade.
Já de minha outra amiga, a lembrança é de um Carnaval. Éramos todos pertencentes a famílias pobres, que lutavam para viver com dignidade e que tinham prioridades com relação a gastos e as fantasias de Carnaval, certamente, não era uma delas. Mesmo porque nunca íamos a bailes nem a clubes. Apenas ficávamos nas calçadas, caracterizados com pintura no rosto, confetes e serpentina nas mãos, brincando e admirando as fantasias que passassem pela rua, a caminho dos bailes ou em franca exibição. Mas minha amiga tinha uma irmã que, estando muito bem financeiramente, satisfazia seus gostos sempre e a menina vinha fazendo segredo do traje que usaria. Segredo trancado a sete chaves. Lá pelas 4 da tarde do domingo de Carnaval, estávamos todos esperando e imaginando o que sairia por aquela porta: uma cigana? Uma baiana? Ou seria uma odalisca – ah, uma odalisca seria o máximo!... Eis que a porta se abre e quem sai primeiro é a orgulhosa mãe para em seguida surgir impávida, cabeça erguida, um brilho de triunfo no olhar e um sorriso a iluminar seu rosto fino, uma fantástica Maria Antonieta, toda em rosa, um deslumbre! E a acompanha-la, numa réplica em verde, sua sobrinha... Fiquei mudinha! Nunca vira roupa mais bonita... Não conseguia despregar o olho... Quando percebeu meu espanto, ela veio até mim e sorrindo, num tom entre brincadeira e afetação, falou: “fecha a boca, boboca... parece que nunca viu uma fantasia... caipira é assim mesmo... Ufa!... vou me sentar, estou cansada...” Virando-se, foi sentar-se sobre um banco que a mãe colocara na calçada, com uma dignidade própria de rainha, como se estivesse sentando no trono de França... E eu ali, me imaginando súdita de Sua Majestade... Vieram outros carnavais, outras fantasias, mas nenhuma superou Maria Antonieta em meu coração de criança. Muitos e muitos anos mais tarde, ao andar pela Galeria dos Cristais em Versalhes, tinha a impressão que, se olhasse mais atentamente, veria aquela figurinha toda em rosa volteando ao som de um minueto...
Saudades, amigas... Tantas...

(Do livro: "Encontro com a menina que eu fui")


terça-feira, 24 de março de 2009

A PUREZA DAS CRIANCAS


Estava, uma noite, no salão paroquial da Igreja de Sto. Antonio, em Everet (Massachusetts) aonde funciona um curso de português para filhos de imigrantes brasileiros, um trabalho muito bonito feito por professoras brasileiras residentes aqui, todas voluntárias, e aonde meus netos também vão sendo alfabetizados em português, dando a esses alunos uma pequena palestra sobre livros e literatura. Já havia falado sobre o quanto o hábito de ler torna melhor o ato de escrever, explicara como havia escrito minhas primeiras crônicas e o que me levara a publica-las, enveredei pela literatura infantil e contei de minha paixão, em meus verdes anos, por Monteiro Lobato, enfim, fui tentando passar para aquela garotada um pouco da minha paixão pelos livros e pela arte da escrita, e como se aproximava a hora de encerrar aquele gostoso encontro, abri espaço para perguntas, achando que crianças entre sete e quatorze anos não perderiam seu tempo com perguntas, apesar do silêncio que se fizera durante minha fala e das carinhas deles todas parecerem atentas. Por isso me surpreendi quando começaram a levantar os braços e colocando suas perguntas. Queriam saber com quantos anos comecei a escrever, com quantos anos li meu primeiro livro. Qual era o meu livro predileto? Como eu fazia para escrever? Um deles até perguntou se eu trabalhava em casa ou se precisava sair para escrever meu livro... E em meio a tantas perguntas um garotinho levantou a mão e eu pedi a ele que fizesse a pergunta, que eu não consegui entender, pedindo então a ele que a repetisse, e também não entendi, então pedi que falasse um pouquinho mais alto e ele olhou para mim com um olhar meio de pânico e, desta vez em voz alta, perguntou “posso ir ao banheiro?” Foi tão surpreendente que todo mundo começou a rir, e foi entre risos que disse a ele que claro que podia, e que fosse rapidinho antes que fosse tarde demais... E ele saiu correndo lá para o fundo da sala, voltando pouco depois já com uma carinha mais alegre e se incorporando ao grupo... Foi a nota pitoresca, alegre, descontraída de uma noite que para mim foi muito especial, por poder pelo menos tentar fazer algum daqueles meninos se interessar pelos caminhos da literatura e da poesia.
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(Dulce Costa / 06 de dezembro de 2008)

Esta crônica foi postada por primeira vez em dezembro passado, e hoje volta ao blog especialmente para Anine, que tem insentivado muito meus escritos. Obrigada, Anine.

segunda-feira, 23 de março de 2009

CRONICAS DE MINHA INFANCIA (11)


O PERU DE NATAL

O velho casarão onde morávamos tinha uma arquitetura muito peculiar, e fazia parte de um conjunto de oito moradias, quatro sobrados e quatro casas térreas, sendo que nós habitávamos um dos sobrados. A porta de entrada já seria considerada hoje uma obra de arte, em madeira maciça entalhada, com janelas de vidro protegidas por gradis de ferro fundido em formato de arabescos. Um pequeno patamar, logo à entrada, dois degraus de mármore branco e um segundo patamar que, como o primeiro, era revestido com primorosos ladrilhos, ligado a dois lances de escada de madeira, separados por um outro patamar também em madeira, escadas que encerávamos duas a três vezes por semana para que mantivessem sempre uma aparência de nova e que, apesar disso, já deixava antever o desgaste inevitável. Um sólido corrimão, também, em madeira maciça, escondia uma cordinha que era puxada lá do alto da escada para abrir a porta lá embaixo, evitando assim a necessidade de subidas e descidas a cada vez que a campainha tocasse.
Ao se chegar ao topo da escada, se virássemos para a esquerda, iríamos para os quartos; passando pelo dos meus tios Antonio e Maria (a italiana), e o dos meus pais, chegaríamos ao quarto mais bonitinho da casa, porque dava para uma sacada, que era o quarto das moças. Se seguíssemos em frente, encontraríamos a sala, mas não sem antes passar pelo quarto dos meus tios João e Maria (a espanhola) A sala imensa, com dois enormes janelões e teto muito alto, era o ponto central de reunião da família e lá passamos horas inesquecíveis entre conversas e risos, ou momentos difíceis, entre dores e lágrimas porque como era costume, mortos queridos eram velados na sala principal da casa e lá me despedi de meus avós paternos e de dois primos, crianças adoráveis, filhos de meu tio João: Lauro, arrancado da vida pelas rodas de um caminhão, aos 12 anos, e Telma, vitimada pelo sarampo na beleza e graça de seus quatro aninhos....
No lado oposto à entrada da sala havia a porta de acesso à cozinha, aonde se chegava por um pequeno corredor, que dava acesso também ao banheiro da casa. O que nunca entendi foi a colocação do banheiro lá no fundo, tão distante dos dormitórios... De um lado da cozinha havia a copa e do outro, uma ampla janela e uma porta que se abria para o quintal. Uma área em forma de corredor, protegida por uma grade de ferro que continuava pela escadaria de cimento, contornava a parede dos fundos e nos levava ao quintal propriamente dito, um amplo terraço onde as mulheres da casa, além de lavarem as roupas – lembro-me de um coradouro feito com caixotes de madeira e folhas de zinco, e dos varais enormes, cheinhos de roupas alvas, perfumadas, como só acontece com as que são lavadas por mãos experientes de maravilhosas donas de casa, essa raça que está em extinção – onde mantinham uma coleção de ervas medicinais plantadas em caixas de madeira e que serviam para amenizar os males da família: malva para o estômago, cidreira e melissa para os nervos, alecrim para problemas cardíacos, mas que era usado também para perfumar as carnes, melhorar os temperos, como a salsinha e a cebolinha, poejo para os pulmões, ao lado de vasos de samambaia, avenca, e outras folhagens típicas de vasos.
E foi nesse quintal que vi por primeira vez, de perto, um enorme peru que meu pai e meus tios haviam comprado para a ceia de Natal. Sempre tive medo de aves, seja lá qual for, desde um minúsculo beija-flor até uma majestosa águia; se tiverem penas e bico, causam em mim uma sensação de pavor indescritível. Assim como algumas mulheres têm pavor de ratos ou de cachorros, homem tem fobia por baratas ou gatos, eu quero distância desses animaizinhos alados. Mas aquele peru era imponente em sua feiúra e tão engraçado quando, provocado, reagia com um “glu, glu, glu, glu...”, que acabei me afeiçoando a ele e durante dois ou três meses, sempre que chegava da escola subia ao terraço para ficar a olha-lo, encantada.
À medida que se aproximava a véspera de Natal, meu coração ia ficando mais e mais apertado, ao imaginar que ficaria sem aquele amigo do qual sempre guardara respeitável distância, apesar da simpatia. Quando finalmente o dia chegou, ao ver meu tio e meu pai colocarem cachaça num bule de alumínio, daqueles de bico longo, entendi que o momento que mais temia se aproximava; saí em desabalada carreira, descendo as escadas em direção à rua e, sentada na soleira da porta, chorando, pedia a Deus que tivesse pena do bichinho e que ele não sofresse muito. Indignada, sem entender o porque das brincadeiras dos que eu considerava carrascos, que diziam que pelo menos o peru ia morrer feliz, totalmente “borracho”, ignorando qualquer conhecimento culinário vindo da tradição familiar que afirmava ser a cachaça uma forma de tornar a carne daquela ave mais macia, só conseguia mesmo era sentir revolta pela maldade dos homens da casa...
Naquele dia nem fui mais à cozinha, só para não ver os restos do bicho e quando à noite, mesa posta para a ceia, musica e alegria no ar, expectativa da vinda do Papai Noel, cheguei à sala e vi aquela enorme travessa toda enfeitada onde, fumegante, exalando um aroma delicioso, estava a única ave que conseguira despertar minha simpatia, senti o chão sumir sob meus pés e não houve quem me fizesse sequer provar um pedacinho daquela carne tão apetitosa. Tivemos outros perus em outras ceias de Natal mas, em respeito ao meu companheiro de tantas tardes, continuei sem conseguir saborear um pedacinho dessa carne sem um travo de remorso, como se estivesse cometendo um ato de traição a um velho amigo...

(Do livro “Encontro com a menina que eu fui”)

UM SELO MUITO ESPECIAL


Preciso agradecer ao Carlos Barbosa de Oliveira, do excelente blog Crônicas do Rochecho, pela gentileza do selinho acima. Como se diz em Portugal, um miminho... Obrigada Carlos, com essa sua gentileza, você deixou o "Em Prosa e Verso" todo prosa, hoje.

domingo, 22 de março de 2009

CRONICAS DE MINHA INFANCIA (10)


NAS MARGENS DO RIO TIETE

O Rio Tietê já foi rota de bandeirantes e é ate hoje, lá pelo interior do estado de São Paulo, em alguns trechos, um rio navegável mas, quem o vê tão poluído aqui na Capital, sequer supõe o quanto era bonito, cheio de vida, até algumas décadas atrás.
Quem, ao trafegar pelas suas vias marginais, olhando para aquelas águas barrentas, sujas, cheias de óleo e de detritos, não se surpreenderia ao ouvir histórias de pescarias passadas às suas margens? Quando digo a meus netos que já pesquei no Rio Tietê eles me olham incrédulos, como se eu lhes estivesse falando de um conto de Fadas, no entanto tenho em minha memória tantas lembranças...
Meu pai e meus tios, por terem crescido numa fazenda de café, sempre mantiveram o gosto pelas coisas do campo, entre elas a pesca e não era raro vê-los sair nas tardes de sábado rumo ao Tietê, lá no trecho da Vila Guilherme, para algumas horas descontraídas em suas margens, de onde voltavam sempre com alguns lambaris, traíras, bagres, que faziam a alegria da garotada no almoço do dia seguinte.
Não sei bem porque mas o fato é que um dia meu pai resolveu levar minha irmã e eu para uma pescaria o que nos deixou empolgadas. Minha irmã, Elza, era uma adolescente muito bonita, beleza que a acompanhou por toda sua curta vida, enquanto que eu, quatro anos mais nova, era ainda uma garotinha desengonçada, um tanto arredia; assim fazíamos contraste naquela tarde tão diferente que meu pai nos proporcionava, ela já com um certo “glamour”, fazendo do simples chapéu de palha que lhe cobria os cacheados cabelos um elemento a mais para realçar a beleza de seu rosto, enquanto que meu chapeuzinho só servia mesmo era para me proteger do sol... E lá fomos nós, levando nas mãos um cestinho onde deveríamos colocar os peixes que conseguíssemos pegar, meu pai carregando as varas, as iscas, anzóis, enfim, toda a parafernália necessária. Descemos a Rua Piratininga e fomos ate a Rangel Pestana onde tomamos o bonde “Vila Maria”, que nos levaria até as proximidades do local que meu pai, com sua experiência de freqüentador assíduo, achava ser o melhor.
Quando chegamos já havia algumas pessoas pescando. Nós nos acomodamos também e, ouvindo atenciosamente as instruções de meu pai, senti-me como se já fosse uma profissional da pesca, tal o entusiasmo que me invadia. Já minha irmã tinha suas atenções voltadas mais para a margem do que para o rio, uma vez que notara, e fora notada, ao chegar, um rapaz que pacientemente deixava-se ficar a espera de que um peixe fisgasse sua isca... Meu pai, zeloso, percebeu logo a troca de olhares e colocou-se em posição de vigia... A sorte de principiante me acompanhava e, um após outro, fui colocando peixes na minha cestinha, enquanto que minha irmã não conseguia nada além dos olhares furtivos do jovem pescador. Num determinado momento, ela sentiu um puxão na linha e gritou por meu pai, para que viesse ajuda-la mas nesse momento ele estava justamente retirando mais um peixinho do meu anzol e viu, contrariado, o rapaz levantar-se dum pulo e correr para o lada de minha irmã, querendo aproveitar a chance para uma aproximação, achando que meu pai baixara a guarda, enquanto dizia:
- Pode estar, senhor, eu ajudo a moça...
Ao que meu pai, pondo-se em pé, rosto contraído, bradou:
- Alto lá rapaz, das minhas filhas cuido eu! Ponha-se ao largo ou eu o jogo no rio...”
E era tal a força da voz de autoridade que emanava dele que o rapaz estancou, lívido, olhos arregalados, balbuciando um pedido de desculpas pela intromissão, enquanto meu pai, com gestos rápidos retirava o peixe do anzol mandando que juntássemos nossas coisas porque a pescaria estava acabada.
Atitude semelhante vi-o tomar para me “defender”, anos mais tarde, quando voltávamos de umas férias em um rancho de pesca que ele mantinha em Piaçagüera. Estávamos no trem de volta para São Paulo, ele e minha mãe sentados em um dos bancos e, por estar lotado, meu irmãozinho e eu na parte posterior, em pé, junto a outras pessoas, quando dei com dois enigmáticos olhos cinzas postos em mim. Não saberia dizer se o dono daquele olhar era bonito ou feio, só me lembro mesmo é da cor daqueles olhos tão diferentes. E, claro, como acontece sempre entre jovens, houve um começo de conversa. Mas só o começo porque antes mesmo de responder ao que o rapaz dissera, meu pai estava já do meu lado dizendo:
- Eu fico aqui com seu irmão. Você vá se sentar ao lado de sua mãe que é muito mais seguro.
Meu pai tão querido, com que saudades eu me lembro destas histórias de pescarias!...

(Do livro "Encontro com a menina que eu fui")

UM PENSAMENTO (4)

CLARICE LISPECTOR

"Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento."

sábado, 21 de março de 2009

CRONICAS DE MINHA INFANCIA (9)


UM ANIVERSARIO INESQUECIVEL

Quando meu irmão nasceu eu estava completando 10 anos e uma diferença de idade tão grande entre um filho e outro não deixa de ter seus inconvenientes, principalmente para a criança maior que sendo até aquele momento caçula, passa então a ser, como se costuma dizer brincando, em minha família, “sanduíche” – aquele recheinho insosso que fica pressionado entre duas fatias de pão... Mas ele sempre foi muito lindo e como todos na casa, perdi-me de amores pelo Walter, que cresceu apesar de todo carinho, um garoto tímido, de olhar triste, sempre um pouco distante.
Meu pai esperara quatorze anos por um filho e nunca escondera sua decepção por eu ter nascido mulher. Assim, não cabia em si de contentamento e, quando da chegada da data do primeiro aniversário de meu irmãozinho, resolveu comemorar com uma festa como nunca houvera antes em nossa casa. Mais que isso, resolveu comemorar os dois aniversários, já que o meu seria seis dias depois. E ao ver os preparativos, fui ficando cada dia mais animada e feliz imaginando o bolo, os doces, a presença das pessoas que eu queria bem... Imagine que até música ao vivo teria! Um dos amigos de meu pai era músico e tinha um filho que tocava acordeom – que por sinal é hoje presença constante na tv, mas que à época ainda andava de calças curtas – e que, convidado, não se fez de rogado e levou sua arte e sua alegria até nossa casa naquela noite enchendo de música o velho casarão. Era lindo demais ver pai e filho unidos num mesmo amor pela música, sorrisos a iluminar-lhes o rosto ao ver a alegria de todos nós...
Bem, todos nós não seria bem o termo porque meu pequeno coração estava bem tristinho, e tinha que fazer uma enorme força para não chorar.
Quando comecei a sonhar com aquela festa, ficava imaginando doces, bolo, música alegria, familiares queridos, claro que sim, mas imaginava também os presentes que receberia. Afinal, com tantos convidados, certamente receberia vários presentes e uma expectativa foi-se formando dentro de mim. Imaginava bonecas, roupas, alguma pulseirinha ou algum anelzinho, objetos que agradam sempre a uma menina na pré-adolescência... E tudo não estava exatamente como o esperado, o sonhado? Não! Tudo não!... Pelo menos para mim, não estava mesmo... Os convidados iam chegando, um a um, trazendo sempre nas mãos uma lembrancinha para... o menino!... E a cada novo convidado a menininha pensava: “não faz mal, o próximo vai trazer uma lembrancinha pra mim, nem que seja um lápis... afinal, eu também sou aniversariante...” – e o próximo chegava com uma lembrancinha sim, mas para o menino... E a música, os doces, o bolo, tudo enfim foi ficando sem cor, sem gosto, uma tristeza só...
Lá pelas nove da noite, já frustradas todas as expectativas, vi chegar minha tia Izabel, uma das irmãs de meu pai, mulher lutadora, de olhar firme e sorriso doce, voz mansa que, em companhia do marido, Ítalo, e dos cinco filhos (ainda nasceriam mais dois) chegava com alarido e alegria, sobraçando um enorme pacote, um presente para o Waltinho, que era seu afilhado. Coração apertadinho, lágrimas teimosas a querer fugir dos olhos, fui me esgueirando em direção ao meu quarto quando ela me chamou:
- Hei, Doçura, onde é que você vai? Não dá um beijo na tia? Vem cá minha lindeza...
Corri para abraçá-la e já ia me afastando quando ela me segurou pela mão e me entregou um lindo pacote enfeitado por um laçarote, dizendo:
- Não quer seu presente de aniversário?”“.
Rosto iluminado, sorriso aberto, abracei minha tia com gratidão. Afinal, alguém se importara comigo, se lembrara de que eu existia, minha tia salvara minha noite. Corri para o meu quarto para abrir o pacote. Era uma bolsinha vermelha, retangular, que à luz do tempo parece-me mais um estojo escolar e, dentro dele, uma nota de cinco cruzeiros (a moeda válida na época). Intrigada com meu comportamento, minha tia veio atrás de mim e, entreabrindo a porta do quarto perguntou:
- Está tudo bem com você, minha lindeza? Está chorando? Não gostou do presente?
Abracei-a com força e entre lágrimas só consegui responder:
- Gostei demais tia! Foi o presente mais bonito que ganhei na minha vida...
Passaram-se tanto e tantos aniversários, ganhei tantos e tantos presentes, singelos uns, valiosos outros, mas nenhum, nenhum mesmo capaz de igualar-se em valor ou beleza àquela simples bolsinha vermelha oferecida com muito carinho por minha doce tia e recebida por mim com tanto amor, no meu décimo-primeiro aniversário.

(Do livro "Encontro com a menina que eu fui")

UMA ROSA, UMAS FOTOS...

(A linda rosa de primavera enfeita a ensolarada manhã deste primeiro sábado de outono)

A casa está tranquila, e aproveito para selecionar alguma fotos antigas para meus arquivos. E enquanto o faço, viajo pelo tempo e espaço, revejo pessoas queridas, relembro fatos e momentos.
Numa foto em que minha mãe está sentada nos degraus da escada que nos levava da cozinha ao terraço de serviço, no casarão aonde morávamos, ampara meu irmão, ainda pequeno, que tenta subir. Há tanta doçura no olhar de minha mãe que me comovo. E fico lembrando dos caminhos trilhados por meu querido irmão, que foram tão curtos... Pareciam tão auspiciosos, tudo indicava que o conduziriam a patamares invejáveis, mas a vida, o destino, sei lá, determinaram o contrário.
Passo a outra foto antes que a tristeza me domine. E a outra é uma foto de um momento lindo, um passeio com minha irmã, minha prima e mais duas amigas aos jardins do Museu do Ipiranga. Eu tão menina, minha irmã já moça, sempre tão linda... saudades... Uma das fotos, muito engraçada, mostra minha irmã sentada sobre o gramado, rindo muito, e se levantarmos os olhos para a ponte sobre o riacho que está atrás dela, vamos ver o motivo do riso... quatro rapazes, debruçados sobre a mureta da ponte, lá no alto, completamente fascinados, cotovelos sobre essa mureta, mãos apoiando queixos, sorrisos "bobos" nos rostos, todos encantados com a mulher sentada ali no gramado... Era deles que ela ria... E fico pensando que a vida tambem não foi generosa com minha linda irmã...
Por isso gosto tanto de fotografias. Elas aprisionam o momento, trazem o tempo passado até nós, renovam nossas emoções, devolvem-nos, ainda que por segundos, pessoas queridas, lugares que nos encantaram.


sexta-feira, 20 de março de 2009

MEU MOMENTO DE POESIA


FLORBELA ESPANCA


AONDE?...

Ando a chamar por ti, demente, alucinada,
Aonde estás, amor? Aonde... aonde... aonde?...
O eco ao pé de mim segreda... desgraçada...
E só a voz do eco, irônica, responde!

Estendo os braços meus! Chamo por ti ainda!
O vento, aos meus ouvidos, soluça a murmurar;
Parece a tua voz, a tua voz tão linda
Cantante como um rio banhado de luar!

Eu grito a minha dor, a minha dor intensa!
Esta saudade enorme, esta saudade imensa!
E só a voz do eco à minha voz responde...

Em gritos a chorar, soluço o nome teu
E grito ao mar, à terra, ao puro azul do céu:
Aonde estás, amor? Aonde... aonde... aonde?...

CRONICAS DE MINHA INFANCIA (8)


O CINEMA IDEAL

Meu filho telefonou lá pra casa perguntando se queríamos ir com ele e a Marta ao cinema, para ver O Gladiador. Estavam indo a um dos cinemas do Shopping Vila Lobos, que eu ainda não conhecia (nem o shopping, quanto mais o cinema!), o filme parecia bom, o que tornava o convite irrecusável, além da companhia, claro.
Ao entrarmos no hall, eles foram comprar pipocas e refrigerantes, o que já me deixou surpresa, surpresa essa que ia aumentando na medida em que percebia o tamanho do pacote de pipocas e do copo de refrigerante, que todo mundo comprava, e ainda mais: as poltronas da sala de exibição tinham até um lugar para o encaixe do copo! Guardadas as diferenças do conforto, era como se estivesse de novo num cinema de minha infância, no Cine Ideal, lá na Rua Piratininga, numa daquelas inesquecíveis tardes de domingo, quando levávamos até lanche para enfrentar a alegre maratona de filmes.
Ah, as tardes de domingo da minha infância! Depois de um almoço sempre especial, era aquela correria para chegar cedo ao cinema, afinal, o bom era sentar bem na frente, para ver o filme bem de perto, torcer pelo mocinho e odiar o bandido do seriado, rir com os desenhos animados que abriam a seção, suspirar pelo galã do filme principal. Primeiro vinha o jornal da semana – quem não se lembra do Primo Carbonari, do Jean Manzon? - depois os desenhos animados; aí entrava um filme que geralmente era de má qualidade mas ninguém se importava com isso porque, após um intervalo de 15 minutos que aproveitávamos para ir ao “toillet” ou então para comprar balas, vinha o melhor da festa: o seriado, seguido pelo filme principal, aquele que arrancava lágrimas das meninas maiores, já com as cabecinhas cheias de sonhos e provocava caçoada por parte dos garotos, sempre muito engraçadinhos na pré-adolescência e na adolescência propriamente dita, estejamos nos anos 50, 60, ou em 2000. A alma humana parece ser imutável...
As segundas à noite havia a “soirée” das moças. Já era uma tradição ir ao Ideal nas noites de Segunda-feira. Mulheres pagavam só meia entrada e, por isso mesmo, as senhoras que nunca podiam sair sozinhas de casa, sob pena de ficarem “faladas”, aproveitavam a desculpa de levar as filhas e lá se iam todas emperequetadas, de braços dados, para molhar seus bordados lencinhos com lágrimas que derramavam pela heroína que muitas vezes personificava seus sonhos já desfeitos, enquanto que as moças iam exatamente perseguindo o sonho de encontrar entre os rapazes que lotavam metade do cinema, seu príncipe encantado. Rapazes na soirée das moças? Claro que sim! E eles iam perder uma chance dessas? Tanta mulher junta? Pois sim!
Lá estavam eles, os galãs do bairro, engravatados, como era obrigatório na época, cabelos devidamente glostorados, os mais “refinados” recendendo a English Lavander de Atkinsons... Irresistíveis! E a elegância das senhoritas? Ah, era um esmero!... Sapatos de saltos altos, sempre combinando com a bolsa e, claro, com a roupa, que era de “sair”, como se costumava dizer. Os chapéus femininos já estavam em desuso mas as meias de nylon eram obrigatórias (e ainda com aquela risca da costura que devia estar reta, exatamente no meio da perna, uma elegância!...) e luvas, sim, luvas... Eu mesma tinha vários pares, e as usaria anos depois, até para ir e vir do trabalho, não calçadas mas seguras junto à bolsa, que geralmente era em forma de carteira...
Parafraseando Caetano, a “deselegância discreta” daquelas meninas era algo até bonito de se notar. Percebia-se a preocupação com os detalhes, o cuidado com a aparência. Afinal, ir ao cinema era um programão para os padrões sociais e econômicos dos habitantes dos bairros operários que sequer poderiam sonhar com um teatro. Quer dizer, sonhar, sonhavam...
Eram tão simples os sonhos de então! Eram tão aparentemente felizes aquelas pessoas em sua simplicidade, em seus parcos recursos! Precisavam de tão pouco para se sentir felizes!
Ao caminhar pelas ruas de minha infância ia captando sons e vozes que enchiam as tardes. Mulheres que cantavam enquanto cuidavam dos afazeres domésticos, homens que assobiavam enquanto iam e vinham do trabalho, músicas que vinham dos rádios ligados em quase todas as casas, gritos e risos de crianças que, felizes e soltas corriam e brincavam pelas ruas... Sons e lembranças de um tempo feliz que não volta mais... Sons e lembranças que tornaram a invadir meu coração, arrancados lá do fundinho do meu baú de memórias por um pacotão de pipocas e um enorme copo de refrigerante comprados num cinema de um sofisticado shopping center, numa tarde de domingo.


(Do livro "Encontro com a menina que eu fui")