floquinhos

sábado, 28 de março de 2009

CRONICAS DE MINHA INFANCIA (16)


FIGURAS DE MINHA RUA

Hoje, fechadas em apartamentos ou enclausuradas atrás de muros altos, por segurança, muitas pessoas deixam de viver momentos de descontração, deixam de conhecer seus vizinhos, nem tomam conhecimento ou por vezes nem sabem da incrível variedade de tipos humanos que mora ou circula pelas proximidades, mas ao abrir meu baú de recordações vou caminhando pelas ruas de minha meninice e adolescência, indo e vindo pelas velhas ruas do velho bairro onde nasci, deparando-me a cada esquina com um não mais acabar de tipos. Curiosos uns, melancólicos outros, cada qual, porém, marcando seu espaço em minhas lembranças, formando uma galeria de personagens típicos de uma época.
Romeu era uma figura melancólica. Beirando talvez os 50 anos, muito alto, magro, parecia saído de um figurino de moda masculina dos anos 20. Vestia sempre terno escuro, marrom, marinho ou preto, sapatos bicolores, gravata larga, de seda, colarinho impecável. Sempre de chapéu, que colocava meio de lado sobre a cabeça, com a parte da frente da aba dobrada para baixo, lembrando a figura de um cantor de tangos, trazia debaixo do braço esquerdo uma revista dobrada e, entre os dedos da mão direita uma sofisticada piteira que levava à boca com afetação. Lá vinha ele, todas as tardes, religiosamente, lá do começo da rua, em direção à Rua Piratininga, em seu passo de “gabiru”, como se costumava dizer então. E, à medida que se aproximava, o silêncio ia se fazendo nas rodas das jovens ou das mulheres que, ao cair da tarde, costumavam tomar a fresca, ou colocar em ordem suas fofoquinhas, enquanto esperavam a chegada dos maridos para o jantar. Cabeça baixa, nenhuma delas ousava botar os olhos em tão “elegante figura”, sob pena de ouvir uma torrente de palavras chulas que sempre eram acompanhadas por gestos obscenos que ele soltava enquanto passava, para depois seguir impávido seu caminho rumo ao nada. Nunca soubemos quem ele realmente era, de onde vinha, nem para onde ia. Diziam que era louco, que já estivera até no “Juqueri”, por isso relevavam seus maus modos... Não era um Dom Quixote, sequer era um cavalheiro. Era apenas uma triste figura...
Bem diferente era aquele homem baixo, meio careca, gestos delicados, olhar doce, cujo nome ficou para mim perdido no tempo. Afinal, aquela figura estava colocada em lugar errado. E num tempo onde o homossexualismo era tratado como aberração mesmo, pelas classes menos favorecidas, onde não havia nem respeito nem benevolência para com eles, aquela pobre criatura era ridicularizada, servindo de chacota para todos aqueles que costumavam gastar seu tempo nas rodas dos botequins daquela rua.
Imaginem que aquele homenzinho de gestos afetados, trejeitos delicados, caiu de amores por meu tio, machão convicto, sonho secreto de muitas mulheres que de tão sérias nem o cumprimentavam para não se sentirem em tentação!... E quando ele passava, de volta do trabalho, lá estava o pobre apaixonado, olhando com olhos de cobiça, suspirando ao vê-lo passar e emitindo um triste: “ah, Toninho, Toninho do meu coração... porque Deus não me fez mulher para ter o direito de te amar?”. Meu tio, sério, fingia nem perceber a presença da pobre criatura, mas mesmo assim não conseguia escapar às brincadeiras e gozações dos amigos que, às gargalhadas, divertiam-se com tão constrangedora situação. Um dia, aquele homenzinho simplesmente sumiu. Cansou de ser objeto de escárnio. Resolveu dar novos rumos a sua vida, quem sabe? Mas durante muito tempo ainda, meu tio teve que aturar as brincadeiras de mau gosto dos “amigos”...
Minha rua era um lugar tão cheio de tipos curiosos... Imaginem que tínhamos um visinho que era da Polícia Secreta! E todo mundo sabia que ele era “Secreta”! Nas tardes de verão ele costumava ir até a leiteria da esquina, muitas vezes vestindo pijama, calçando chinelos, para dois dedinhos de prosa com os amigos ou mesmo com o proprietário, e os garotos da rua ficavam olhando, fascinados, aquela figura forte que tomava pelo gargalo da garrafa, quase de uma só vez, um litro de leite inteirinho, enquanto ouvia ou contava histórias. Afinal, aqueles meninos estavam frente a frente com um “James Bond” tupiniquim!

Inesquecíveis figuras de minha rua...

(Do livro "Encontro com a menina que eu fui")



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