O MORGADO
As famílias portuguesas do final do século XIX e início do século XX tinham quase sempre um padre entre seus membros e a de meu pai, para não fugir à regra, tinha lá os seus planos... Um dos filhos de meu avô deveria pertencer ao Clero e a escolha recaíra sobre o terceiro deles, João, no momento de seu nascimento. Assim ficara resolvido e assim seria se a família, por contingências da vida, não tivesse emigrado para o Brasil, onde aportaram nos idos de 1911. Escapou de ser padre, mas ficou conhecido para sempre, no seio de nossa família, como “O Morgado”, apelido dado a ele pelo cunhado, João Pires, homem culto e vivaz, que o queria muito bem.
Baixo, gordinho, rosto redondo e sorridente, olhos miúdos, de um castanho profundo, emoldurados por óculos de aros dourados, ralos cabelos lisos, grisalhos, assim era o alegre tio João. E sua figura roliça e ágil surge sempre em minha memória, saltitante, no centro da sala, as mãos erguidas por sobre a cabeça, estalando dedos ao som dos compassos do vira,
“Oi vira que vira, oi torna a virar,
que as voltas do vira, são boas de dar...
Maria, vamos ao vira, ai,
que o vira é coisa boa...”
ou do Bailinho da Madeira... Cantava e dançava numa alegria trazida lá de suas raízes da Ilha da Madeira e alegrava com sua presença qualquer reunião familiar.
Tanto quanto por sua alegria, era famoso também pelo apetite... Era o que se costuma chamar de “um bom garfo”. Lembro-me dele chegando em casa para o almoço, vestindo o macacão azul usado pelos metalúrgicos. Como dispunha de apenas hora e meia e gastasse uma hora para ir e vir da Metalúrgica Sta. Rosa, onde trabalhava, não tinha tempo a perder. Subia rapidamente as escadas que vinham da rua, atravessava o corredor em passos curtos e rápidos, dava um bom dia seco, que aquela hora era séria, colocava o chapéu no porta-chapéus e sentava-se à mesa já posta e com o prato prontinho para ser devorado em suculentas garfadas, em poucos minutos. Era um homem de gostos simples, gostava do arroz e feijão caseiros, temperados ao modo da roça, e mesmo que não tivesse nada como mistura, aquele seria para ele um manjar dos deuses, mas minha tia sempre fazia seu prato colocando o feijão no fundo, coberto por uma montanha de arroz branco e fumegante e no topo dessa montanha a mistura única poderia ser um bife acebolado, um filé de peixe, ovos estrelados, não importava muito. O tempero era delicioso e ele se regalava com cada bocado que levava à boca. Terminado o almoço, levantava-se da mesa, pegava seu chapéu e, colocando-o na cabeça dizia um até logo sorridente, já que, de barriga cheia, enxerga-se o mundo melhor... E lá se ia de volta ao trabalho. Ã noite gostava de sentar-se à porta de casa para dois dedos de prosa com seus vizinhos e nunca recusava uma parceria para um joguinho de sueca que disputava com os irmãos nas noites de sexta-feira ou de sábado. Joguinho que se estendia pelas madrugadas e que não raras vezes terminara em acaloradas discussões que geravam até carrancas e caras feias trocadas ao longo da semana e que se iam dissipando com o tempo para voltarem a acontecer num outro jogo, tempos mais tarde...
Uma das histórias que meu pai gostava de contar a respeito do irmão era quase uma lenda familiar. Dizia que estavam todos num almoço em casa do Tio Manuel onde fora servida uma deliciosa leitoa, cuja pele ficara em grande parte sobre a travessa, quando o Tio João, respondendo a brincadeiras sobre o quanto tinha comido, alegava que fora pouco e que poderia comer ainda a pele da leitoa, inteirinha, tão apetitosa estava. Riram e descreram, ao que ele simplesmente segurou a pele por uma das beiradas e, como se fora uma lagarta numa folha, foi começando a degluti-la. Foi indo, foi indo, foi indo, até que, num dado momento, para desespero do alegre comilão, sentiu-se entalado: a pele nem descia para o estômago, nem voltava...Tapas nas costas, trancos, tudo inútil! No desespero, meu tio teria pego uma garrafa de cerveja que se encontrava sobre a mesa e jogado pela garganta abaixo quando, com um estalido, a pele desceu e ele desengasgou, para alívio de todos. Nunca soube se realmente isso tinha acontecido ou se era uma brincadeira entre irmãos, mas sempre que perguntávamos ao nosso tio se era verdade, ele sorria e respondia: “Se eu tivesse conseguido comer a pele sozinha, teria feito melhor proveito, mas ela quis a companhia de uma cervejinha!...” e abria uma sonora gargalhada...
(Do livro:"Encontro com a menina que eu fui")
4 comentários:
Deliciosa esta história! Pela descrição que faz, seu tio João tinha o aspecto físico e o estilo bonacheirão de um padre da época. Talvez por isso tenha sido o escolhido, não?
Carlos, obrigada!
Bem-vindo em seu retorno ao seu Portugal. Bom ve-lo de volta em seu Rochedo...
Pois é, talvez só pelo fato dele ter sido o escolhido a natureza o tenha presenteado com o tipo físico próprio de um morgado... risos...
Dulce
A literatura é muito bem conseguida, é muito moderna, com traços de escritores, como Camilo, Júlio Dinis, etc.
Há um personagem real, que se parece muito do tradicional padre da família, que certos escritores descreveram.
Daniel
Daniel,
obrigada...
Como vê, o morgado deveria mesmo ter sido padre, já que tinha todo o jeito para isso... rs...
Postar um comentário