O PERU DE NATAL
O velho casarão onde morávamos tinha uma arquitetura muito peculiar, e fazia parte de um conjunto de oito moradias, quatro sobrados e quatro casas térreas, sendo que nós habitávamos um dos sobrados. A porta de entrada já seria considerada hoje uma obra de arte, em madeira maciça entalhada, com janelas de vidro protegidas por gradis de ferro fundido em formato de arabescos. Um pequeno patamar, logo à entrada, dois degraus de mármore branco e um segundo patamar que, como o primeiro, era revestido com primorosos ladrilhos, ligado a dois lances de escada de madeira, separados por um outro patamar também em madeira, escadas que encerávamos duas a três vezes por semana para que mantivessem sempre uma aparência de nova e que, apesar disso, já deixava antever o desgaste inevitável. Um sólido corrimão, também, em madeira maciça, escondia uma cordinha que era puxada lá do alto da escada para abrir a porta lá embaixo, evitando assim a necessidade de subidas e descidas a cada vez que a campainha tocasse.
Ao se chegar ao topo da escada, se virássemos para a esquerda, iríamos para os quartos; passando pelo dos meus tios Antonio e Maria (a italiana), e o dos meus pais, chegaríamos ao quarto mais bonitinho da casa, porque dava para uma sacada, que era o quarto das moças. Se seguíssemos em frente, encontraríamos a sala, mas não sem antes passar pelo quarto dos meus tios João e Maria (a espanhola) A sala imensa, com dois enormes janelões e teto muito alto, era o ponto central de reunião da família e lá passamos horas inesquecíveis entre conversas e risos, ou momentos difíceis, entre dores e lágrimas porque como era costume, mortos queridos eram velados na sala principal da casa e lá me despedi de meus avós paternos e de dois primos, crianças adoráveis, filhos de meu tio João: Lauro, arrancado da vida pelas rodas de um caminhão, aos 12 anos, e Telma, vitimada pelo sarampo na beleza e graça de seus quatro aninhos....
No lado oposto à entrada da sala havia a porta de acesso à cozinha, aonde se chegava por um pequeno corredor, que dava acesso também ao banheiro da casa. O que nunca entendi foi a colocação do banheiro lá no fundo, tão distante dos dormitórios... De um lado da cozinha havia a copa e do outro, uma ampla janela e uma porta que se abria para o quintal. Uma área em forma de corredor, protegida por uma grade de ferro que continuava pela escadaria de cimento, contornava a parede dos fundos e nos levava ao quintal propriamente dito, um amplo terraço onde as mulheres da casa, além de lavarem as roupas – lembro-me de um coradouro feito com caixotes de madeira e folhas de zinco, e dos varais enormes, cheinhos de roupas alvas, perfumadas, como só acontece com as que são lavadas por mãos experientes de maravilhosas donas de casa, essa raça que está em extinção – onde mantinham uma coleção de ervas medicinais plantadas em caixas de madeira e que serviam para amenizar os males da família: malva para o estômago, cidreira e melissa para os nervos, alecrim para problemas cardíacos, mas que era usado também para perfumar as carnes, melhorar os temperos, como a salsinha e a cebolinha, poejo para os pulmões, ao lado de vasos de samambaia, avenca, e outras folhagens típicas de vasos.
E foi nesse quintal que vi por primeira vez, de perto, um enorme peru que meu pai e meus tios haviam comprado para a ceia de Natal. Sempre tive medo de aves, seja lá qual for, desde um minúsculo beija-flor até uma majestosa águia; se tiverem penas e bico, causam em mim uma sensação de pavor indescritível. Assim como algumas mulheres têm pavor de ratos ou de cachorros, homem tem fobia por baratas ou gatos, eu quero distância desses animaizinhos alados. Mas aquele peru era imponente em sua feiúra e tão engraçado quando, provocado, reagia com um “glu, glu, glu, glu...”, que acabei me afeiçoando a ele e durante dois ou três meses, sempre que chegava da escola subia ao terraço para ficar a olha-lo, encantada.
À medida que se aproximava a véspera de Natal, meu coração ia ficando mais e mais apertado, ao imaginar que ficaria sem aquele amigo do qual sempre guardara respeitável distância, apesar da simpatia. Quando finalmente o dia chegou, ao ver meu tio e meu pai colocarem cachaça num bule de alumínio, daqueles de bico longo, entendi que o momento que mais temia se aproximava; saí em desabalada carreira, descendo as escadas em direção à rua e, sentada na soleira da porta, chorando, pedia a Deus que tivesse pena do bichinho e que ele não sofresse muito. Indignada, sem entender o porque das brincadeiras dos que eu considerava carrascos, que diziam que pelo menos o peru ia morrer feliz, totalmente “borracho”, ignorando qualquer conhecimento culinário vindo da tradição familiar que afirmava ser a cachaça uma forma de tornar a carne daquela ave mais macia, só conseguia mesmo era sentir revolta pela maldade dos homens da casa...
Naquele dia nem fui mais à cozinha, só para não ver os restos do bicho e quando à noite, mesa posta para a ceia, musica e alegria no ar, expectativa da vinda do Papai Noel, cheguei à sala e vi aquela enorme travessa toda enfeitada onde, fumegante, exalando um aroma delicioso, estava a única ave que conseguira despertar minha simpatia, senti o chão sumir sob meus pés e não houve quem me fizesse sequer provar um pedacinho daquela carne tão apetitosa. Tivemos outros perus em outras ceias de Natal mas, em respeito ao meu companheiro de tantas tardes, continuei sem conseguir saborear um pedacinho dessa carne sem um travo de remorso, como se estivesse cometendo um ato de traição a um velho amigo...
(Do livro “Encontro com a menina que eu fui”)
8 comentários:
Oi Dulce;
Continu-o "invadindo" e apreciando este livro maravilhoso que faz o favor de o "abrir" para nós...
Desta vez, fiquei a conhecer a casa da familia e uma terna cena de Natal que marcou a Dulce.
Tudo farei para perder o menos possivel dessa belas páginas que nos fazem recuar ao momentos mais doces da vida que é a infância.
bjs
Osvaldo
Osvaldo,
obrigada por vir reviver conosco momentos de um tempo já tão distante. E se quiser o livro, já sabe, é só me dizer para onde enviar.
bjs
Naveguei ate a este mar e li uma excelente prosa. A si, aplaudo o teor das palavras...
Luis
Muito obrigada, Luis, pela presença, sempre bem-vinda, e pelas palavras.
Dulce
Olá Dulce,
cá estou invadindo as suas recordações. Mais uma vez estou em comunhão consigo. Meu pai, ainda hoje, gosta de criar galinhas e coelhos. Mas, quando vou à aldeia nunca os vou ver porque mais tarde não os consigo cozinhar,muito menos comer...
Beijos
Pois é, Lourdes, a gente acaba se afeiçoando aos bichinhos e depois fica dificil imaginá-los como alimento...
Bjs.
Boa noite Dulce, ficarei muito feliz em receber um exemplar de seu livro, amor literatura... E vc sabe que sou sua fã. Estou fazendo um trabalho bem legal com o Livro Pelas Ruas da Cidade... Quem sabe não podemos fazer um projeto com o seu tb na escola? Beijos anine
Anine
Já recebi seu e-mail e claro que vai autografado, só não garanto fama... rs...
Gostaria de saber detalhes sobre esse seu projeto Livro Pelas Ruas da Cidade. E quanto a um projeto com meu livrinho, eu ficaria muito honrada, mas falamos disso depois que tenha lido... rs... Vou postar uma pequena crônica sobre uma pequena palestra que fiz aos alunos da escola aonde meus netos estudam portugês em Massachusetts. Foi uma delícia.
Beijos e obrigada.
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