floquinhos

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

VINICIUS DE MORAES - Da Solidão

Sequioso de escrever um poema que descrevesse a maior dor do mundo, Poe chegou, por explosão, a idéia da morte da mulher amada. Nada lhe pareceu mais definitivamente doloroso. Assim nasceu "O Corvo": o pássaro agourento a repetir ao homem sozinho em sua saudade a pungente litania do "nunca mais". Será esta a maior das solidões? Realmente, o que pode existir de pior que a impossibilidade de arrancar à morte o ser amado, que fez Orfeu descer aos infernos em busca de Eurídice e acabou por lhe calar a lira mágica? Distante, separado, prisioneiro, ainda pode aquele que ama alimentar sua paixão com o sentimento de que o objeto amado esta vivo. Morto este, só lhe restam dois caminhos: o suicídio, físico ou moral, ou uma fé qualquer. E como tal fé constitui uma possibilidade - que outra coisa é a Divina Comedia para Dante, senão a morte de Beatriz? - cabe uma consideração também dolorosa: a solidão que a morte da mulher amada deixa não é, porquanto absoluta, a maior solidão...

Qual será, então? Os grandes momentos de solidão, a de Jô, a de Cristo
no Horto, tinham a exalta-la, uma fé. A solidão de Carlitos, naquela incrível imagem em que ele aparece na eterna esquina, no final de Luzes da Cidade, tinha a justifica-la o sacrifício feito pela mulher amada. Penso com mais frio n'alma na solidão dos últimos dias do pintor Toulouse-Lautrec em seu leito de moribundo, lúcido, fechado em si mesmo, e no duro olhar de ódio que deitou ao pai, segundos antes demorrer, como a culpa-lo de o ter gerado um monstro. Penso com mais frio n'alma ainda na solidão total dos poucos minutos que terão restado aopoeta Hart Crane quando, no auge da neurastenia, depois de se ter jogado ao mar, numa viagem de regresso do México para os Estados Unidos, viu sobre si mesmo a imensa noite do oceano imenso a sua volta, e ao longe as luzes do navio que se afastava. O que se terão dito o poeta e a eternidade nesses poucos instantes em que ele, quem sabe banhado de poesia total, boiou a esmo sobre a negra massa liquida, à espera do abandono? Solidão inenarrável, quem sabe povoada de beleza... Mas será ela também a maior solidão? A solidão do poeta Rilke, quando, na alta escarpa sobre o Adriático, ouviu no vento a musica do primeiro verso que desencadeou as "Elegias de Duino", Será ela a maior solidão?

Não, a maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão e a do ser
que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana. A maior solidão e a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo, e que não da a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro. O maior solitário e o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e de ferir-se, o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entretece também tudo em torno. Ele é a angustia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes da emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilegio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre."

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