floquinhos

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Na tarde que cai, Fernando Pessoa...


Apontamento

A minha alma partiu-se como um vaso vazio. 
Caiu pela escada excessivamente abaixo. 
Caiu das mãos da criada descuidada. 
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.
Asneira? Impossível? Sei lá! 
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu. 
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.
Fiz barulho na queda como um vaso que se partia. 
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada. 
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.
Não se zanguem com ela. 
São tolerantes com ela. 
O que era eu um vaso vazio?
Olham os cacos absurdamente conscientes, 
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.
Olham e sorriem. 
Sorriem tolerantes à criada involuntária.
Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas. 
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros. 
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida? 
Um caco. 
E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.


(Alvaro de Campos)

2 comentários:

Lídia Borges disse...

A imagem dos cacos, fragmentos, muitos de um só, como sempre se sentiu. Longe da UNIDADE que desejava:

"Para seres grande
Sê inteiro
Nada teu exagera ou exclui..."

Óptima escolha!

Um beijo

UBIRAJARA COSTA JR disse...

Lidia Borges

Obrigada.
E obrigada pela citação, que gosto muito, tabém.
beijos